Eu tinha dezesseis anos de idade quando fui ser cobrador em uma jardineira velha de propriedade do Zé do Anjo a qual fazia a linha Candeias a Oliveira, via São Francisco de Paula. Candeias não tinha, nesse tempo, uma estação rodoviária. Apenas um ponto de ônibus à porta do bar do Raimundo do Antero e sua mulher Luzia do Vico Teixeira. O Bar e Restaurante Rodoviário, era estabelecido numa velha casa edificada onde, atualmente, se encontra um lote vago ao lado da clinica dentária do Dr. Giordani Bonaccorsi, na Avenida 17 de Dezembro.
O veículo transportava poucos
passageiros. Partia às seis horas da manhã e retornava às quatro da tarde. Ao
término da viagem, era minha tarefa dar uma limpeza no carro e prepará-lo para
o dia seguinte.
Certo dia, quando executava
esse trabalho, me deparei com uma carteira de dinheiro abaixo de uma poltrona.
Ao abri-la e verificar o seu conteúdo, vi uma cédula de identidade em nome de
José Messias da Silva além da importância avultada de uns 540 reais em dinheiro
e um cheque de 200. comparando-se ao dinheiro de hoje. Para se ter uma ideia,
essa importância correspondia a mais de um mês do meu salário.
Eu que nunca sentira a emoção
de achar uma carteira e sabendo que um encontro dessa natureza era então, tido
como um fato de sorte para quem acha e de azar para quem perde, fiquei trêmulo
e, consequentemente, preocupado. Mas não com o que acabara de encontrar e sim
com a aflição que deveria estar sentindo a pessoa que a tivesse perdido.
Seria difícil até mesmo
imaginar quem a tivesse perdido porque a jardineira com capacidade para 25
passageiros, de São Francisco de Paula até Oliveira, andava lotada inclusive
com passageiros de pé.
Imediatamente, levei o objeto
ao patrão que, após conferi-lo e anotar o conteúdo, disse-me: "guarde-a durante
trinta dias, se não aparecer o dono, fique com ela para você." Aquela
resposta mexeu com todas as minhas entranhas. Contudo, é claro que o patrão
sabia que alguém a procuraria e, com certeza, aproveitou para apalpar a minha
honestidade.
Naquela noite, eu não dormi.
Pensava na hipótese de não aparecer o dono do dinheiro durante os trinta dias,
após os quais, eu dele tomaria posse. Isso representava mais de um mês de
trabalho. Eu poderia comprar muitas roupas e alimentar a minha vaidade de
adolescente. Comer do bom e do melhor na rodoviária de Oliveira onde vendiam
diversas guloseimas, principalmente, um tipo de casadinho delicioso que era um
biscoito da minha maior preferência. E nem sempre eu tinha dinheiro para isso.
Esse prazer só me era dado nos dias de pagamento para atender a ânsia alimentar
dos meus dezesseis anos.
Os mais variados pensamentos
começaram a atrofiar os meus neurônios e, no outro dia, ao partir em viagem, já
fui pensando quem seria o dono desta carteira que ia bem acomodada no bolso da
minha blusa. E os pensamentos continuavam e eu já não sabia o que pensar se
pensava bem ou se pensava mal. A minha consciência, talvez, fosse me condenar
no caso daquele dinheiro ser convertido a meu favor.
Seria um lucro em detrimento
do azar de outrem. Eu no auge dos meus dezesseis anos, passava por uma das
maiores emoções de um menino pobre. Meu pai teria me recomendado rezar para que
o perdedor aparecesse. E eu estava naquele conflito... Se aparecer ou não
aparecer...
E assim foi até que a velha
jardineira chegou à São Francisco de Paula. E logo ao descer da jardineira
defrontei-me com um cidadão magro, vergado e meio giboso, meio careca, olhos
fundos e rosto meio barbado; contando mais ou menos uns sessenta anos com um
tipo de tosse nervosa que me fez pensar tratar-se de um incômodo pela perda da
carteira. Eu o reconhecera como um viajante no dia anterior.
---Por acaso você achou uma
carteira dentro da jardineira ontem eu viajei com vocês?
Perguntou-me
---Sim! Aqui está...
E o cidadão ao invés de me
agradecer, sorrir, ou falar alguma coisa, abriu a carteira e pôs-se a conferir
o seu conteúdo e foi dando as costas sem ao menos me dizer, obrigado.
Aquilo me deixou desapontado
porque eu quisera que a minha honestidade fosse ressalvada. Não haveria a
necessidade de me gratificar, entretanto, pelo menos, me agradecer. Afinal, a
jardineira no itinerário Oliveira / São Francisco de Paula andava lotada e
poderia ter sido a carteira, encontrada por outra pessoa. O meu encontro com
aquele objeto valioso não teria sido testemunhado. Acho que pelo menos um
agradecimento eu merecia. Mas um senhor que acompanhava esse mal agradecido,
disse-lhe: Você não vai dar uma gorjeta para o cobrador? E de muita má vontade
pegou uma nota de 2 cruzeiros, daquelas antigas e me deu.
E eu peguei, afinal o
casadinho do bar da rodoviária de Oliveira estava naquele dia a me esperar.
Armando Melo de Castro.
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