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quinta-feira, 24 de março de 2011

O TERNO MARROM


Cenas da peça teatral Matter Dolorosa, Lia Langsdoff, Gabriel Carlos, Armando Melo e Willlian Ferreira, 

Entre o final da década de 50 e principio de 60 em Candeias existiu um grêmio teatral amador que tinha o nome de “Grêmio Teatral Monsenhor Castro” idealizado pelos amigos, Gabriel Carlos, João de Sousa Filho e Antônio Macêdo. ---- Neste mesmo tempo, havia outro grupo, do Sebastião Quirino, cujas peças eram de sua autoria. Antes, porém, bem antes, já teriam existido diversos grupos teatrais que vinham desde os tempos do Sr. Bernardo Bonaccorsi e sua Esposa Dona Nica. ----

O Grêmio Teatral Monsenhor Castro quando apresentava uma peça tinha a renda convertida para a Sociedade São Vicente de Paula; e posteriormente para as obras de construção da nova Matriz. --- Os idealizadores do grêmio formavam a trupe efetiva de atores. Porém a cada peça surgiam novos atores tendo em vista a afinidade da pessoa com o papel a ser atuado.

Entre os participantes das diversas peças levadas ao palco, podemos citar os seguintes atores protagonistas e secundários, exceto figurantes: Gabriel Carlos, o diretor, Antônio Macêdo, João de Sousa Filho, Lia Langsdorff, Maria Amélia de Castro, Ivanilda Vilela, Claudete Freire, Willian Ferreira, Zé Delminda, Cristovão Teixeira, Zé Mori, Wanderley Alvarenga, Edson Chagas, Armando Melo de Castro, Antônio Sidney de Sousa (Titoco) Hilton Vilela, Darlene Alves, Luiz Bonaccorsi Neto, Joãozinho Cassiano e muitos outros. --- Na peça Os “Transviados” atuou num papel de destaque a professora Marli Pacheco, de Campo Belo, nesse tempo residente em Candeias, esposa do amigo Alceu Pacheco. Foi uma atuação brilhante.  

Infelizmente a maioria das peças assim como “A Escrava Isaura” “O Louco da Aldeia” “Os Transviados” “Rosa do Adro” e outras não ficaram nenhum registro nem escrito e nem fotográfico, lamentavelmente.

Tenho muito bem guardados em minha memória até alguns trechos dos textos decorados em todas as minhas participações. É uma boa lembrança que qualquer um que tenha participado disso, com certeza, terá sentido uma saudade boa de sentir. Afinal, o teatro é uma mentira e viver fora da nossa realidade é como uma viagem a um mundo desconhecido. Principalmente no meu caso que só fiz papéis de bonzinho. ----

Gabriel Carlos era o diretor. E muito se orgulhava disso. Fazia sempre o papel central da peça, ou seja, quase sempre o mau-caráter. Se alguém lhe perguntasse o seu nome, ele dizia: Meu nome é Gabriel Carlos da Costa, mas eu não uso o Costa. E depois Gabriel Carlos é o meu nome artístico... De quando em vez, aparecia no ensaio meio turbinado de “João Marques” e dizia: “Eu aqui não sou diretor, sou um lava-cachorro. Ninguém me respeita.” Mas os goles nunca atrapalhavam os seus ensaios, apesar de deixa-lo demasiadamente eufórico e falador.

Tinha ele dois ternos bons que só eram vistos quando por ocasião de representar uma peça teatral. Era um terno marrom e um azul. Ele sempre dava um jeito de usar os dois ternos em dois atos. Dizia sempre que o terno marrom era de uma casimira superior e que se lhe tinha custado uma nota preta. O outro, conseguido num consórcio do Chiquinho Alfaiate, teria sido mais barato.

Naquele tempo era obrigação de cada cidadão ter pelo menos um terno, ou seja, paletó, calças e colete. Esse era o traje que as pessoas reservavam para quando fosse ser enterrado. Hoje uma cultura dispensada.

Lembrando-me da peça “A Ré Misteriosa” não me foge a memória a protagonista, amiga Lia Langsdorff irmã do Jesus Langsdorff, uma moça muito bonita, excelente atriz e inteligente como todo Langsdorff. Foi uma atuação brilhante dessa amiga que logo se mudou para Goiás e eu nunca mais eu a vi. ---- E o Gabriel Carlos o mau-caráter da peça, que indiscutivelmente entendia do assunto. O personagem de Gabriel era assassinado e teria que cair no palco. E com isso foi a sua maior preocupação, estar neste ato, com o terno azul. --- Nas discussões sobre o vestuário, durante os preparativos da peça, era infalível este comentário: “Ai eu estarei com o meu terno marrom”.

Um dia ele me disse:

“Ninguém nunca me viu com o meu terno marrom fora do palco. Ele é reservado, exclusivamente, para o teatro.” E fazia questão de realçar: “São poucas as pessoas que têm um terno igual àquele” dissera isso por mais de uma vez para mim. Parece que a sua adrenalina subia quando se via dentro daquele terno.

O fim da vida de Gabriel foi dramático. Vitimado pelo câncer, faleceu antes de completar sessenta anos. O final de sua vida foi marcado pela pobreza e apenas com a ajuda dos parentes e amigos. Não teve uma aposentadoria, não tinha nenhum tipo de recurso financeiro e, já velho e doente, não tinha mais forças para trabalhar. Naquele tempo, o serviço social ainda deixava muito a desejar e não era como nos dias atuais.

Estive presente no seu sepultamento. Foi muito triste vê-lo morto e sendo enterrado numa cova rasa. Eu que o vi morrer por duas vezes nas peças teatrais, agora não era teatro... Agora, ele estava morto de verdade, um dos meus maiores amigos, com quem eu tanto aprendi quando com ele trabalhei de pintor de paredes. Agora morto, dentro de um caixão sem flores, vestido com o seu tão querido terno marrom o qual estava perfeito no seu corpo, graças o emagrecimento que a doença lhe proporcionou.

Conclui naquele momento que o meu amigo, o meu grande amigo Gabriel Carlos, viera a esse mundo, apenas buscar um caixão e aquele terno marrom.

Finalizando o meu texto, fecho os meus olhos, concentro-me e busco na minha memória o meu amigo Gabriel alegre, sorridente e bem vivo, falando do seu terno marrom.

Que Deus o tenha meu bom amigo!

 

Armando Melo de Castro
Candeias MG. Casos e Acasos