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terça-feira, 30 de abril de 2013

COM FOGO NAS HEMORRÓIDAS.

Posto de Higiene - Candeias Minas (Foto Clara Borges)

Na década de 50 o sistema de saúde em Candeias era extremamente debilitado. Não que fosse por incompetência dos únicos médicos que por aqui existiam, Dr. Zoroastro Marques da Silva e Dr. Renato Vieira Na realidade, eles faziam o que podiam. O problema era a falta de recursos da época, o que lhes impediam de fazer um trabalho eficiente.

 Em virtude de tanta precariedade, o povo daquela época era um tanto conformado com a sorte. Já sabia que, com a chegada da velhice, sofreria com alguma doença até a morte e isso era uma sina. Muitos nem procuravam recursos, se viravam atrás de curadores, raizeiros, chás e benzedores.

 A mortalidade infantil era alta e constante. Comumente, via-se um enterro de criança, chamado enterro de anjo, com aquelas laterais do caixão abertas em que se via o pequeno defunto lá dentro. No Cemitério São Francisco , a esquerda de quem entra, era um canto destinado ao enterro de crianças. ---- Não existiam essas aposentadorias de hoje. ---- As pessoas idosas, quando não aguentavam mais, passavam a viver a expensas dos filhos; de parentes ou na Vila Vicentina, quando não acabava de porta em porta pedindo esmolas.

 E é por isso que até hoje existe o preconceito sobre o fato de ter parentes naquela instituição, apesar de não ter nada mais a ver com o passado. A Vila Vicentina de Candeias hoje é um motivo de orgulho para aqueles que a administram. Eu, no passado, fui voluntário por lá e posso fazer uma avaliação do quanto a Vila Vicentina de Candeias melhorou. Hoje, as pessoas vivem com dignidade e conforto. No passado, era tudo muito pobre, sem quaisquer recursos quando havia muita gente para ocupar o espaço.

Dr. Zoroastro Marques da Silva, era o chefe do posto de saúde daquela época. Aliás, não era chamado posto de saúde e sim    Posto de Higiene. Infelizmente, se tratava de um local desprovido de equipamentos dos quais uma equipe médica teria necessidade para o melhor desempenho do seu labor. O posto se dispunha apenas de muita boa vontade da equipe de servidores. Os recursos eram mínimos. O laboratório de análises clínicas era, igualmente, precário como também o serviço odontológico destinado quase que apenas para as extrações de dentes. Parece que a prioridade do governo, naquele tempo, era a vacina contra a varíola e a verminose. As vacinas para outras doenças não existiam. Quando o caso era mais grave, o paciente era levado para a Santa Casa de Misericórdia São Vicente de Paulo, na cidade de Campo Belo, de onde voltava morto ou, raramente, recuperado.

Dr. Renato, quando chamado, visitava as casas onde houvesse um doente. Nunca explorou ninguém. Cobrava uma consulta em visita à residência, quase o mesmo preço que cobrava em seu consultório e não era esses preços abusivos por uma consulta nos dias de hoje. Entretanto, dada à falta de dinheiro, as pessoas o chamavam quando a morte já rondava pela porta. Lembro-me que ele tinha um carro da marca Dodge, cor verde. Quando aquele carro se encontrava parado à porta de alguém, já surgiam os comentários da vizinhança: “Será que fulano escapa?!”.

E por falar no Dr. Renato, pousa, em minha memória, um fato que aconteceu no seu consultório.

Numa velha casa que existia na esquina da Praça Antônio Furtado com o Beco Belmiro Costa, morava Dona Iolanda com uma de suas filhas. Viúva, na beirada dos oitenta anos de idade; estatura baixa, magra, enrugada, cabelos brancos com penteado de coque; cara fechada e voz Forte. Tinha o vocabulário solto nas melhores traduções chula. ---- Minha avó, Olinda, era amiga dela e eu sempre a acompanhava nas suas visitinhas, pois eram vizinhas.

Dona Iolanda tinha uma dentadura com um dente quebrado, e a gengiva dessa prótese, daquele tempo atrasado, era vermelhada. Então quando ela raramente resolvia soltar um sorriso a dentadura folgava querendo se soltar da boca e ela se protegia com a mão. Aquilo me deixava impressionado, pois eu ainda não entendia bem de dentaduras, ou seja, de próteses dentárias.

Dona Iolanda apareceu incomodada com uma terrível crise de hemorroidas. Apesar de sua filha querer leva-la ao Posto do Dr. Zoroastro ou no Dr. Renato, ele não quis ir, preferiu procurar primeiro os tratamentos alternativos, pois a primeira coisa que um médico iria fazer seria manda-la tirar a calcinha para olhar o seu botão. Pois isso só aconteceria num ultimo caso. Eu tenho vergonha. Dissera para a minha avó quando tentava convencê-la que deveria ir ao médico. ----

Já teria se submetido a todos os tratamentos com chás de raízes através das indicações da vizinhança cujas hemorroidas de Dona Iolanda já estava mais do que faladas. Já teria se consultado com o então famoso curador, Chico Viriço... Benzedeiras e até o tal de Joaquim Fortunato, um bruxo que morava lá pelos fundos da cidade, teria sido procurado. E nada, nadinha, teria resolvido. Enfim, a saída foi procurar o Dr. Renato.

Dona Iolanda já andava pensando um punhado de bobagens e rezava dia e noite. Fez diversas promessas para Nossa Senhora das Dores para que não fosse uma vítima de um câncer, o que para ela era a chamada de “doença ruim”.

Não era praxe marcar uma consulta com o Dr. Renato. Ele não possuía uma secretária. À medida que o paciente chegasse, ia sendo atendido. Havia dias em que a pequena sala de espera de seu consultório estivesse cheia, mas nem sempre. Ele após atender o cliente, vinha trazê-lo até à porta e perguntava quem seria o próximo. ---- Dessa maneira, Dona Iolanda chega com a sua filha e se permanece de pé, pois não estaria dando conta de ficar assentada, quando o Dr. Renato sai de sua sala e diz no seu sotaque bastante próprio:

---Está tudo bem, por aqui? Tem alguém se sentindo mal que precisa ser atendido com preferência. Caso tenha, os demais não vão se importar de passar à frente.

Nesse momento, Dona Iolanda diz esperta:

---- Eu dotôr! Eu num tô guentano nem sentá!  A minha murroida parece até que vai pegá fogo. Se eu pudé... intrá na frente?

 Ninguém se opôs a entrada de Dona Iolanda à frente. Dai quando ela volta alguém lhe pergunta: O que ouve Dona Iolanda

 --- Que humilhação minha fia... Vô tê qui ir im campo Belo, ele falou que isso deve sê um ispinho dum diabo dum pexe que nóis cumeu lá incasa... Mardito pexe ele istrepou o meu butão.

 Armando Melo de Castro

Candeias MG Casos e Acasos



domingo, 21 de abril de 2013

O VELHO SAFADO.


Foto para ilustrar o texto.
Na minha adolescência, conheci um candeense cujo comportamento lhe daria o adjetivo de safado, ou melhor, de safadão. Para as pessoas que gostam de colocar as palavras no diminutivo, uma característica dos membros da família Alvarenga, por exemplo, ele, com certeza, seria chamado de safadinho. Tinha, mais ou menos, setenta anos de idade, do tipo manguarão, pescoço comprido, uma boca grande apresentando uma dentadura que exaltava os dotes profissionais do dentista, Boanerges Pacheco, feitas em uma única forma. Possuía o cabelo branco, cortado à moda Príncipe Danilo além de uma voz mole que dava a aparência de pensar palavra por palavra sobre o que ia falar. Creio que seu nome deveria ser Alexandre, mas, todo mundo o tratava e o conhecia por Xande. Quando ele vinha ao encontro de uma turma, as pessoas já se preparavam para identificá-lo: - “Lá vem o velho safado!

Chamava todo mundo de "bem" ou de "menino" fosse homem ou mulher. As mulheres nunca conversavam com ele porque se assim fizessem, levavam na cara certos elogios que as deixavam envergonhadas ao extremo. Fosse velha ou fosse nova, fosse criança ou adolescente, o tema das suas conversas era sempre considerado indecente.

Se a mulher fosse velha, ele, descaradamente, dizia:

--- Ocê ainda dá uma brincadeira boa, meu bem! Galinha véia dá cardo grosso! E como dá! Cê guenta muito bem uma meia sola, sô! Ocê, minha fia, dá uma requenta de bacaiau muito boa que dá pá inchê o pandu até num querê mais.

Se era um tipo balzaquiana, ele diria com a cara mais lambida:

--- Sá sinhora, minha fia do céu! Ocê tá cuma tanajura apititosa dimais, sô! Agora que intendi purque qui o zôto fala qui come tanajura. Ocê prá mim é uma janta de natal, daquelas qui a gente vai cumeno, cumeno até dá indigistan.

Se a mulher era uma mocinha nova, uma adolescente, aí fazia um comentário sucinto:

--- Êh, minina, ocê tá do jeito que eu penso! Deve tá iguar uma ispiguinha de mio verde discascada. Cabilim marilim. Inda num pode cumê purque num granô direito.

O seu grande amigo de conversa e de safadeza era o Dé Cassiano. Eles estavam sempre conversando. Comumente, eram vistos em um banco da praça, em frente ao Bar Piloto. E para cada mulher que passava, eles tinham um comentário a fazer. Despiam-nas em pensamento, imaginavam-nas ensaboadas, tomadas e penetradas, totalmente isentas de vestes e pudor. Xande dava tanta ênfase ao assunto e parecia até que iria sentir um orgasmo imaginário. O que fazia muita gente crer se tratar de um tarado. Mas, nunca passou de pura conversa. Nunca se teve notícia de que tivesse passado da conta com alguma mulher.

Dentre os poucos homossexuais que havia em Candeias, naquele tempo, Renê nunca escondeu isso de ninguém. Todo mundo sabia disso e o aceitava em virtude da sua lealdade consigo mesmo porque, desde criança, expunha não uma opção sexual como muitos dizem, mas sim, a sua condição sexual. Ele dizia que era homossexual porque se sentia assim e não porque teria optado para isso. Afinal, essa condição lhe custava certos problemas, inclusive, dentro da própria família e ele sempre as encarou sem escândalos, sem brigas e com muita dignidade.

Estávamos no carnaval de 1961 e Renê era um grande animador da folia em Candeias. Sempre inventava uma fantasia inteligente. Naquele ano, ele retratou o cosmonauta russo, Iuri Gagarin o primeiro homem a viajar pelo universo em uma espaçonave. Era o assunto do momento. O mundo se preparava para assistir à primeira missão espacial tripulada da história.

Renê fez a sua fantasia demonstrando, sucintamente, as vestes de Gagarin: um macacão de astronauta. E para uma ênfase maior, usou um capacete como uma pequena réplica da espaçonave com as suas antenas o que lhe dava uma aparência de quem portava enormes cornos.
 Empanado naquela alegoria, Renê desce a avenida e, ao passar em frente ao Bar Piloto, cai sobre os olhos da dupla de comentaristas indiscretos: Xande e Dé Cassiano:
 Sabendo que iria temperar o angu daquela panela que fermentava a vida alheia, Renê parou de repente, deu uma rabanada feito um pavão enfeitado ou de um ganso que saiu da água e seguiu o seu caminho ficando a mercê do julgamento daqueles juízes carnavalescos.

---Minino do céu!? Cê viu, Dé? O que qui é isso, criatura?

---Esse é aquele fio do Chico de Assis, o Renê.

---O que qui é aquilo na cabeça dele? Tá pareceno chifre! Tá doido, sô?! Tá iscambado dimais da conta, uai!

----Uai, Xande, com esse trem na cabeça, tá pareceno que ele reganhô de veis.

----Ocê parece, Dé, que porva dessas  fruta encaroçada?

----Cê é doido, Xande! Fruta que dá no esgôto é veneno. No meu cardápio, eu prifiro um den de aio, ou intão, um pastilinho.

Armando Melo de Castro
Candeias Casos e Acasos


quinta-feira, 11 de abril de 2013

O FENÔMENO CANDEENSE.

O livro de Eclesiástico do Velho Testamento da Bíblia Católica é um dos sete livros que não estão inclusos na Bíblia Protestante. Por serem considerados, pelos judeus da palestina, como livros não inspirados pelo Espírito Santo, eles foram renegados pelos evangélicos. Contudo, o Eclesiástico trata-se de um livro reconhecido no judaísmo pelas suas reflexões e o valor histórico, apesar de não ser compendiado como um livro sagrado da religião judaica.

Escrito há duzentos anos antes de Cristo, nos faz refletir, em seu capitulo 29, sobre um assunto que se encontra em evidencia nos dias de hoje: "O mau pagador”.

Dívida é aquilo que se deve. Quem deve tem o dever de pagar dentro do compromisso firmado, seja verbal ou escrito. Os maus pagadores estão classificados em vários tipos. Existem aqueles que não pagam, simplesmente, porque não gostam de pagar. Mesmo possuindo a quantia para a quitação do débito, têm dó de tirar o dinheiro da sua conta bancária e colocar na do credor. Fazem do seu bolso o ninho do dinheiro, pois pensam que dinheiro choca no bolso, esses não arrumam desculpas. Apenas dizem para o credor voltar amanhã ou, então, que, posteriormente, o procurará. Entretanto, não cumprem, enrolam com o dinheiro no bolso.

Há aqueles que já foram bons pagadores, contudo, agora, estão em uma situação financeira difícil, haja vista a ocorrência de fatos alheios a sua vontade que lhe ocorreram naquele momento. Pode ser uma doença na família, o desemprego, um envolvimento com maus negócios. Talvez sejam avalistas, fiadores que afundaram junto com seus avalizados. Esses, até não merecem ser considerados como maus pagadores, caso não tenham perdido a vergonha. Dizem sempre: "Devo e não nego. Quando puder eu pago". Muitos vendem tudo o que possuem para deixarem o seu nome limpo, negociam e acabam se ajeitando. Todavia, neste grupo, existem aqueles que ao perderem a vergonha preferem perder o nome e entrar, de vez, para o grupo dos maus pagadores ao invés de abrir mão de algum patrimônio.

O pior dos maus pagadores é aquele que não paga e está sempre desconfiando do seu credor. Para ele, sua dívida está sempre acima do normal. Está sempre colocando em suspeição a dignidade do credor. Acha que o Banco lhe cobrou juros a mais, que o agiota é um ladrão, um explorador, que o comerciante aumentou a sua conta no estabelecimento ou, até, que alguém possa ter comprado com o seu nome. Ele nunca faz as contas na hora de comprar ou de pedir o dinheiro emprestado. Qualquer preço lhe serve e qualquer juro lhe agrada. Ele quer ver, em sua mão, um produto comprado que seja fiado ou em um dinheiro tomado emprestado. E, se por acaso, o credor insistir na hora de receber ainda quer briga. Afinal de contas, uma inimizade em uma dessas circunstâncias lhe é bem favorável.

Existe, também, o bom pagador chato. Ele paga em dia e acha que está fazendo um grande favor ao credor. A dívida ainda está por vencer e ele já está dando satisfação, dizendo que o dinheiro está sendo preparado para a quitação. Auto se elogia e pensa que saudando os seus compromissos no vencimento está agindo por mérito, quando, na verdade, ele nada mais está fazendo do que cumprir com a sua obrigação. Para mim, esse é o mau pagador incubado.

Tem um rifão português que diz que todo mau pagador é bom cobrador. Eu, talvez, então, seja uma exceção a essa regra porque sempre fui um bom pagador como também um bom cobrador. Na minha vida, tive funções de cobrador pelas quais pude conviver com os mais diversos comprometidos com dividas fossem bons ou maus pagadores. Como bancário, por mais de trinta anos, eu pude ver o que o dinheiro faz na vida das pessoas.

Na minha adolescência, fui cobrador do antigo Clube Recreativo Candeense. Eu sabia quando estava sendo enrolado e quando o devedor mandava falar que não estava em casa. Posteriormente, fiquei sabendo pela boca deles mesmos o quanto escondiam de mim quando me viam com aquela pasta na mão. Eu assentava nas imediações da sua casa até ele aparecer e não foram poucas às vezes em que o mentiroso dava de cara comigo. Se o dinheiro não aparecesse, eu voltava no dia seguinte. Eu fui o cobrador mais chato que já existiu em Candeias. Afinal, não eram dívidas de remédios, mas sim, de bebidas alcoólicas durante um baile ou o carnaval. Quando eu me sentia, demasiadamente, enganado, eu cobrava perto da namorada, cobrava do pai, cobrava da mãe. E como naquele tempo a rapaziada era um pouco mais vergonhosa, o dinheiro aparecia. 

Certa vez, o Italiano Césare Matti, genro do grande comerciante Celestino Bonaccorsi, me entregou uma pasta cheia de contas vencidas e atrasadas. Entre elas, havia uma considerada perdida. Disse-me que eu seria remunerado com 10% de todas as contas vencidas.

A conta era, naquele tempo, de Cr$ 800,00 (oitocentos cruzeiros) no dinheiro antigo. Se eu a recebesse, seria uma grande bolada a meu favor. Eu ia duas vezes, por dia, visitar o Gonçalo em sua marcenaria. Ele nunca negou 

Olha, Armando, se eu achar quem me venda um bilhete de loteria fiado e se este for sorteado, eu pago, com certeza, essa conta com todos os juros, com correção monetária e ainda lhe dou uma gorjeta caprichada. É o único jeito de você receber. Fora isso é impossível. No mais, você pode vir aqui todo dia para a gente bater um papinho, eu muito gosto de conversar com você.
 FENÔMENO CANDEENSE.

Armando Melo de Castro
Candeias MG casos e acasos

quarta-feira, 3 de abril de 2013

COMENDO CARANGUEJO.

 

 ----Eu faço parte de um grupo de blogueiros amadores que, na maioria das postagens, mostra histórias verídicas. Um idoso contando histórias o faz com casos e fatos ocorridos no passado e nesses casos ele sempre faz parte do elenco quando se sente como se estivesse pintando um quadro em cores misturadas, retratando uma arte híbrida do naturalismo e do realismo. Contudo, a fonte inspiradora não se encontrará mais sob os olhos, mas sim, entre o cérebro e o coração. É assim que me sinto neste momento.

----Hoje, ao abrir uma gaveta do armário das minhas lembranças, veio à tona de minha memória, o nome de um dos meus grandes amigos: o candeense, Elvécio Melo Silva. Ele era o filho mais velho do Dé Cassiano. Elvécio se encontra em um quadro apenso às paredes do meu coração.

----Ao recorda-lo foi como encontrá-lo no antigo Bar do Lulu. Eu, com meu violão mal tocado, cantando com ele as canções de Claudio de Barros, um cantor que fazia muito sucesso naquele momento. Tínhamos muita coisa em comum. Sempre nos entendemos. Gostávamos das mesmas músicas e fazíamos serenata quando não havia, ainda, as vitrolinhas portáteis.

----Elvécio foi, durante muitos anos, viajante. Vendia as famosas balas Santa Rita, da cidade de Oliveira. Posteriormente, veio a ser motorista de taxi, profissão esta que exerceu durante muitos anos fazendo a praça de nossa cidade.

----Era o locutor oficial das barraquinhas de Nossa Senhora das Candeias e de São Sebastião. Empolgado que era, colocava sempre o seu prefixo musical, a famosa polca: Barril de Chope e, -----conforme o link abaixo-----; assim, iniciava a sua locução:

----“---Senhoras e senhores”! Ao som deste prefixo musical, vai para o céu de Candeias o serviço de alto falante das barraquinhas de N.S. das Candeias e de São Sebastião.

Na técnica de som está, Sebastião Salviano;

Recepção do estúdio, Marina Salviano;

Discoteca e seleção musical, Santinha Salviano; ao microfone, este amigo de vocês: Elvécio Melo Silva.

 ----Nas barraquinhas de Nossa Senhora das Candeias, o ouvinte encontra um quentão caprichado, um delicioso tira-gosto, um jogo de víspora, o coelhinho da sorte, além do leilão das prendas. E não se esqueçam de que a renda arrecadada será toda destinada para o aumento e reforma da nossa matriz.

 ----Assim, dando sequencia a nossa parte musical, vamos ouvir na voz de Duo Guarujá, o bolero: Só nós dois. Esta gravação Sueli do Dondico, oferece ao Armando do Zé Delminda, com muito amor e carinho.”

----Na nossa juventude, tudo tem uma conotação mais alegre. Portanto, eu sinto muita saudade das quermesses daquele tempo. Parece que eram mais animadas, mais alegres.

----Casado com a professora, Marta Santos, Elvécio vivia na antiga casa da nossa saudosa professora, Dona Elisa Paiva, bem próximo à Igreja do Senhor Bom Jesus.

----Certa vez, quando eu morava na cidade de São Paulo, recebi a visita do meu amigo, Elvécio. Dali, fomos para Santos a convite de nosso amigo, Ronaldo Oliveira. Ao chegar à cidade da Baixada, fomos à praia. Ronaldo, como bom anfitrião, levou-nos a um barzinho onde nos foi oferecido um prato de caranguejos. Eu e o Elvécio havíamos ouvido falar que se tratava de uma iguaria deliciosa, um produto do mangue. E nós, que não sabíamos nem o que era mangue e nem o que era comer caranguejo, ficamos assustados e calados.

----Aguardamos curiosos e receosos. Afinal, comer caranguejo não estava em nossa programação. Mas sendo caranguejos do mar, naturalmente não teria nada a ver com os nossos caranguejos venenosos e asquerosos. Até que o famoso prato fosse servido, enchemos a cara de conhaque uma vez que não podíamos ser covardes diante de um convite tão gentil. Quando o garçom colocou aqueles enormes crustáceos à mesa, acompanhados de um martelo de madeira, farinha, limão e molho de pimenta, eu e o Elvécio nos entreolhamos como se quiséssemos dizer: E, agora, José?!

----Ronaldo, com o fito de nos intimidar, não nos ensinou como comer o bicho. Disse apenas: isso é igual a peixe, sirvam-se. Ficou enrolando, e eu iniciei olhando para os lados para ver se tinha alguém comendo aquele bicho, deveras, esquisito.  Contudo, nós, com o cérebro já turbinado, pegamos o martelo demos uma martelada naquilo e chupamos como se chupa um osso de suã e o que menos nos interessou foi as "perninhas" do bicho. O que era, realmente, para ser apreciado. Para quem conhece a iguaria, sabe o fora que demos.

-----Que mancada! Dois caipiras comendo caranguejos aos olhos do garçom com os olhos fixos em nós e o Ronaldo como se estivesse sentindo um orgasmo. Foi um dia inesquecível. Durante anos eu e Elvécio comentamos sobre isso.

----O tempo ficou incumbido de lhe roubar a saúde. Anos depois, vitimado por um cruel diabetes, o meu bom amigo ficou resguardado no seu habitat, fora dos contatos com os amigos. A falta de visão o colocou em um mundo escuro e, em uma última visita que lhe fiz Elvécio não me reconheceu. Poucos dias depois, chegava-me a notícia de sua morte.

----Retratar uma passagem da vida é, sem dúvida, reviver aquele momento, seja ele feliz ou infeliz. Se feliz, é como se estivesse buscando revivê-lo; se infeliz, é demonstrar a felicidade por tê-lo vencido. Entretanto, de qualquer forma, o brilho desse quadro será a saudade que jamais se apagará enquanto existir vida em uma caixa de lembranças. Uma caixa de lembranças na qual se encontram a infância e a juventude guardadas em um canto do sótão da vida. Relembrar o passado é reviver uma viagem pela estrada da existência. Uma existência que, com certeza, é cheia de tropeços, de risos e lágrimas.

---- Onde quer que esteja meu bom amigo, Elvécio Melo Silva, receba o meu forte e saudoso abraço.

 ----Clique para ouvir o Barril de Chope

http://www.youtube.com/watch?v=b41CK_xEbeE

 Armando Melo de Castro