A minha morada está instalada num apartamento padrão, sendo uma
suíte, tres quartos, salas de jantar e estar, cozinha, área de serviço e
dispensa. Somos uma família de tempos diferentes, eu, a mulher e a filha temos
naturalmente um conflito de gerações porque contamos 28, 59 e 76 anos. Contudo
isso vem a ser bem administrado; cada um tem o seu computador, a sua televisão
e o seu lugar preferido dentro da residência. Eu fico maior parte do tempo no quarto de hospedes sala onde posso ouvir os meus boleros, navegar na internet e me
concentrar numa leitura. A minha filha,
chegada num sertanejo universitário, ouve as suas músicas lá no seu quarto na
área dos fundos. E a mulher corre todos os pontos sem ter preferência.
Quando debruço em minha janela sinto-me acomodar num camarote
de um grande teatro de um extenso palco onde se desenrola grandes variedades da
vida real. É como se eu estivesse num
ponto privilegiado e o proscênio estivesse abrindo os meus olhos... Um ponto
onde eu poderia contar até os focos das lâmpadas da ribalta.
Um aposentado como eu aproxima-se a toda hora da janela.
Principalmente quando ouve um barulho qualquer. Eu que moro no terceiro andar
dou notícia de tudo que se passa a duzentos metros para baixo, duzentos para
cima na rua e particularmente aqui no meu caso que tenho de frente um arranha
céu, fico sabendo de muita coisa que se passa olhando para cima.
A cidade aos domingos amanhece morta em comparação com os dias
da semana. Hoje, de manhã bem cedo, após uma noite de calor infernal,
levanto-me e depois de esquentar os meus ovos e tirar o meu jejum, é hora de
abrir a janela e bispar a rua apenas para conferir o “paradeiro”.
Atendendo a curiosidade
dos meus olhos, após dar uma olhada saudosista lá pelo apartamento da vizinha
que morreu recentemente e deixou as suas
plantinhas órfãs, surpreendo-me
vendo uma mulher caída ou deitada, debaixo de uma quaresmeira que existe de frente
com a minha janela, na margem oposta da rua. E mexendo com a mulher no chão estão
duas outras mulheres tentando reanima-la.
Sabe-se que aposentado quando vê uma coisa dessas sai
correndo com a intenção de se sentir útil. Imediatamente me livrei do pijama,
já tomei de um copo de água com açúcar, desci as escadas quase correndo e
cheguei ao lugar onde a mulher estava deitada. Eu que a imaginara morta vejo
agora que está viva, pois respira ofegantemente. Estaria desmaiada ou
extremamente bêbada. Tentei reanima-la com a ajuda das duas outras pessoas e
mais outros que se aproximaram, mas nada. A mulher não conseguia sair daquela
síncope da qual a gente não sabia se era um colapso, uma embriaguez, um ataque
epilético etc. Alguém já tentava ligar para o SAMU, e apesar da hora começava a
juntar gente.
E eu ali, um aposentado imbuído no espírito de escoteiro, se
sentindo inteiramente útil ao próximo, presidindo e administrando, comandando e
interferindo, com a vida daquela mulher de uns quarenta e poucos anos, mulata, meio
gorda de cabelos crespos amarelados, batom vermelho e vestido curto listrado.
E
quando ela deu uma balbuciada, eu, carinhosamente, fui tentar faze-la tomar água
com açúcar, e foi quando, para a minha surpresa e dos demais presentes, essa
mulher com uma voz pastosa de bêbada, usando do seu rompante um tanto rouco e
grosseiro, diz com todas as letras:
“Sai de mim viado e me deixa em paz”!
Enfiei o rabo no meio das pernas e com um sorriso sem graça
para os presentes, saí... Sai calado, caladinho da silva, brigando comigo
mesmo: Quem mandou você mexer com quem estava quieto seu viado!? Não é assim que se diz?
Vê se aprende seu aposentado de merda a não sair mais do seu camarote, da sua janela, e vir dar uma de ator da vida real. Quem
entra sem ser chamado vira viado! Bem feito!!!
Armando Melo de Castro
Candeias MG Casos e Acasos.
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