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quarta-feira, 27 de julho de 2011

AS MÃOS DO DENTISTA




 É de todo patente que a precariedade do serviço odontológico do tempo do Brasil Colônia, se estendeu por muitos anos afora. Teria sido durante muito tempo restrito a extração de dentes. No início essa atividade teria sido exercida por pessoas ignorantes que sequer entendiam o perigo que colocavam em risco a saúde daqueles que usavam os seus serviços. Esses profissionais não viviam apenas disso. Eram barbeiros, curandeiros, enfermeiro e sangradores.

Os médicos da época se negavam a fazer esse tipo de serviço. Eles alegavam que perderiam o tato das mãos leves para a hora de uma cirurgia mais frágil. Como as pessoas que faziam esse trabalho eram vistas como corajosos astuciosos e impassíveis, subentende-se que os médicos tinham era medo de exercer a odontologia.

Com o tempo à medida que a coisa foi se desenvolvendo, foram surgindo os famigerados “práticos”. Profissionais que exerceram por longo tempo a profissão de dentista sem a mínima condição técnica ou conhecimento básico sobre aquilo que estavam fazendo. ---- Um aprendia com o outro e já abria a sua “portinha”. Não tinham sequer, o cuidado necessário contra as infecções, inclusive com a falta de higiene. É verdade que existiam alguns mais cuidadosos, mas mesmo assim, vendo os cuidados de hoje em dia, a gente pode observar que a lambança naquele tempo era generalizada.

Esses práticos, os mais organizados, tinham uma autorização governamental, mas para isso precisavam provar que já possuíam acima de dois anos de prática e essa prática eles conseguiam fazendo as maiores barbaridades. A maior parte desses profissionais trabalhava clandestinamente.

A extração de dentes era a maior função dos práticos. Parece que eles preferiam vender dentaduras. Arrancava os dentes. Isso demorava um século. Depois tinha que ficar com a boca sem dentes por muito tempo. Os práticos alegavam que a boca teria que ficar murcha para a dentadura não ficar bamba. ---- Muitos desistiam da dentadura para evitar o suplicio de ter que acostumar com aquela ferradura na boca. Os dentistas práticos recomendavam que à medida que a dentadura nova fosse pegando a gengiva, deveria ser raspada no local com o canivete. ---- O único medicamento que eles conheciam era o cibazol, um comprimido para tirar dores e que acabou tão desmoralizado que hoje além de não existir tornou-se sinônimo de coisa que não vale nada.

As obturações existiam, mas eram tratadas quando o dente já teria sido tomado quase todo. Eram feitas em ouro que os dentistas compravam dos coveiros do cemitério, verdadeiros mineradores nas covas dos defuntos. --- Os coveiros sabiam perfeitamente onde teria sido enterrado um defunto com bastante ouro na boca. ---- Quase não existiam nesse tempo, em Candeias, túmulos. As pessoas eram enterradas no chão.

Outra gambiarra dos práticos era o pino do pivô, uma colocação de um dente postiço na raiz aproveitada do dente natural. Para isso costumava-se usar para pino agulhas de radiola. E quando o paciente usava o dente de mau jeito a fusão se desfazia, soltando o dente postiço, ficando aquela ponta de pino exposta. A maior parte das pessoas não voltava ao dentista e dava o seu sorriso com aqueles pinos expostos. Era triste!

A primeira vez que fui a um dentista está bem guardada nos labirintos da minha memória. São cicatrizes psicológicas que jamais vão desaparecer de mim e que para elas dificilmente poderiam existir uma plástica mental. ---- Lembro-me de quando fui seguro na cadeira, a pedido do dentista, pelo Ximango, um negão de todo tamanho. Isso por estar inquieto com um dente tumoroso e o rosto todo inchado. Meu pai saiu de perto porque não quis ver o meu sofrimento. ----- Numa segunda vez lembro-me de que fui tocado com o "ferrinho" com todo descuido no nervo de um dente doente. Só de me lembrar disso, arrepiam-me as canelas.

Esta casa branca, situada na Rua José Hilário, em Candeias, MG, antigamente ficava num barranco quando a rua ainda não era calçada. Ali estava estabelecido o gabinete  dentário do Sr. Boanerges Pacheco, sem diploma, um dos chamados "dentistas práticos". Num tempo que a odontologia ainda engatinhava no Brasil e em Candeias estava parada. ----- No lugar da janela era a porta de entrada para o gabinete, que não possuía sala de espera; e a clientela se amontoava e aguardando a sua vez do lado de fora. 

Nesse tempo, em Candeias não havia dentistas formados. Eram apenas os chamados práticos. Profissionais sem formação nenhuma. Era um prático ensinando ao outro.

Eu não tenho vergonha de dizer que morro de medo de dentista. Tenho pavor de jaleco branco. Minha pressão sobe, ela que é 12x8 já chegou a 18, certa vez em Governador Valadares eu cheguei a pensar que ia morrer.

A imagem do dentista me apavora. Aquele barulho de seus instrumentos me deixa impotente, frágil e com medo até da morte. Eu não consigo ver o dentista como alguém que vai me ajudar, vai me enfeitar a boca, tirar as dores e cuidar do meu sorriso. Eu o vejo como um verdugo. A impressão que eu tenho é de que ele gosta de judiar de mim. Se ao mexer em minha boca, o dentista der um sorriso qualquer, eu me irrito. Se não abre a cara eu tenho medo.

Eu não queria sentir isso, mas não está em mim. Eu já rezei, pedi a Deus para me tirar isso, mas é tão difícil.

O ultimo dos dentistas que mexeu em minha boca me pareceu não ser tão carrasco. Ele notou que eu era um “cagão” e me deu papo. Entrou com uns assuntos diferentes, falou de pescaria, e eu nada. Falou de futebol e eu nada. Falou de cerveja e eu nada. Até que ele falou em música, de cantores que a mãe dele gostava e fora fã. Perguntou-me se eu os tinha conhecido, como Jackson do Pandeiro, Carlos Galhardo, Francisco Alves e Vicente Celestino. ---- Daí eu comecei a entrar na dele.

Com esse assunto eu fui transportado há um tempo distante, vendo a minha mãe lavando roupa no tanque próximo da porta da cozinha de nossa casa, e sempre com uma música desses cantores na boca. O coração materno de Vicente Celestino; a Criança Feliz de Francisco Alves, a fascinação de Carlos Galhardo e a Sebastiana do Jacson do Pandeiro. ---- Daí ele me mandou abrir a boca e lembro-me apenas, de quando ele disse: Que vergonha, um gerente de Banco com uma cárie desse tamanho. E ligou o motorzinho... ---- Nesse momento não me faltou vontade de sair voando pela janela daquele consultório.

Ele encostou o motorzinho, assentou-se de novo e perguntou-me sobre assuntos bancários, e como eu era bancário ele conseguiu me deixar mais tranquilo. ---- Notei nesse dia, que a odontologia tinha realmente melhorado em termos dos profissionais. Precisavam acabar agora, com o jaleco branco, com o ferrinho, com as agulhadas dos anestésicos e com o barulho do maldito motorzinho.

Mesmo com a evolução da odontologia, longe daquele cheiro horrível dos produtos odontológicos, daquela cadeira de Chessman, daquela broca assassina, do boticão e do ferrinho maldito, então, ferramentas prioritárias dos dentistas, essas lembranças ficaram tão bem entranhadas nos meus neurônios que a palavra dentista ainda me assusta. A demora do tratamento. Parece-me que os dentistas não dispensam clientes por falta de tempo e com isso vai dividindo o espaço com todo mundo.

Apesar do esforço que faço, durante anos, no sentido de me conscientizar sobre esta questão, posso garantir que, ao entrar num consultório odontológico, sinto que estou indo para um gabinete próprio para um suplício.

Eu contava dezesseis anos quando fiz o meu primeiro tratamento de dentes. Até então, eu não tinha consciência do que seria isso. Eu só tinha consciência que tratamento era sinônimo de sofrimento. E para mim dentista era apenas para arrancar os dentes e colocar uma dentadura no lugar.

Para esse tratamento, eu procurei o Sr. Boanerges Pacheco. Um dentista prático que tinha grande clientela por ter um preço módico. Mas essa modicidade tinha um preço também. Lembro-me que fui ao seu gabinete (os práticos davam aos consultórios o nome de gabinete) e fiz um orçamento para tratar três obturações. Isso demorou três semanas. Eu já trazia comigo a maldita lembrança da minha apresentação ao mundo dos dentistas, quando fui seguro pelo Ximango na cadeira, como se estivesse sendo castigado por algum crime. Talvez, pelo meu estado apreensivo, Boanerges evitava mexer por muito tempo na minha boca. Era um zás-trás e pronto, já me mandava voltar num outro dia. Eu nunca entendi tanta demora. Parecia que uma cárie não era uma simples corrosão e sim um esbarrancado.

Como eu já fumava nesse tempo, o serviço incluía uma limpeza geral no final do tratamento com um produto para clarear os dentes.

Assim, no último dia, minutos antes desse processo de limpeza, Boanerges me pede licença e entrou num pequeno banheiro que tinha no seu gabinete. Cá de fora, eu pude receber os estrondos que os seus intestinos forneciam aos meus ouvidos. Depois de algum tempo, ele sai, lá de dentro, sem passar as mãos por qualquer torneira e as enfia dentro de minha boca a fim de isolar com algodão a pele dos dentes onde iria usar o tal branqueador. Foi quando eu senti um cheiro horrível de fezes.

Ao fazer a aplicação daquele medicamento, nos meus dentes, comentou tranquilo: “O Vadinho da Sota me falou que esse remédio tem gosto de bosta”.

Eu não tive ânimo para achar graça do comentário. Não só pelo fato de nunca ter comido bosta para identificar o gosto, mas com certeza ficou a suspeita de que o cheiro havia sim, mas sei lá se era do remédio ou de suas mãos.

Armando Melo de Castro

Candeias MG Casos e Acasos.

(Cronica relacionada: A BOCA E A VAGINA -

Clique aqui: https://candeiasmg.blogspot.com/2011/08/boca-e-vagina.html

















Um comentário:

Celle disse...

Armando, muito boa narrativa!
Poucos são os sessentões que não t~em medo de dentista, sempre devido traumas adiquiridos na infãncia, com os primeiros tratamentos, ainda na raça!É contagiante a forma como descreve os fatos que nos levam a visualizar a tal situação! Parabens!
celle