É de todo patente que
a precariedade do serviço odontológico do tempo do Brasil Colônia, se estendeu
por muitos anos afora. Teria sido durante muito tempo restrito a extração de
dentes. No início essa atividade teria sido exercida por pessoas ignorantes que
sequer entendiam o perigo que colocavam em risco a saúde daqueles que usavam os
seus serviços. Esses profissionais não viviam apenas disso. Eram barbeiros,
curandeiros, enfermeiro e sangradores.
Eu não tenho
vergonha de dizer que morro de medo de dentista. Tenho pavor de jaleco branco.
Minha pressão sobe, ela que é 12x8 já chegou a 18, certa vez em Governador
Valadares eu cheguei a pensar que ia morrer.
Com esse assunto eu fui transportado há um tempo distante, vendo a minha mãe lavando roupa no tanque próximo da porta da cozinha de nossa casa, e sempre com uma música desses cantores na boca. O coração materno de Vicente Celestino; a Criança Feliz de Francisco Alves, a fascinação de Carlos Galhardo e a Sebastiana do Jacson do Pandeiro. ---- Daí ele me mandou abrir a boca e lembro-me apenas, de quando ele disse: Que vergonha, um gerente de Banco com uma cárie desse tamanho. E ligou o motorzinho... ---- Nesse momento não me faltou vontade de sair voando pela janela daquele consultório.
Os médicos da época
se negavam a fazer esse tipo de serviço. Eles alegavam que perderiam o tato das
mãos leves para a hora de uma cirurgia mais frágil. Como as pessoas que faziam
esse trabalho eram vistas como corajosos astuciosos e impassíveis,
subentende-se que os médicos tinham era medo de exercer a odontologia.
Com o tempo à medida
que a coisa foi se desenvolvendo, foram surgindo os famigerados “práticos”. Profissionais
que exerceram por longo tempo a profissão de dentista sem a mínima condição
técnica ou conhecimento básico sobre aquilo que estavam fazendo. ---- Um
aprendia com o outro e já abria a sua “portinha”. Não tinham sequer, o cuidado
necessário contra as infecções, inclusive com a falta de higiene. É verdade que
existiam alguns mais cuidadosos, mas mesmo assim, vendo os cuidados de hoje em
dia, a gente pode observar que a lambança naquele tempo era generalizada.
Esses práticos, os
mais organizados, tinham uma autorização governamental, mas para isso
precisavam provar que já possuíam acima de dois anos de prática e essa prática
eles conseguiam fazendo as maiores barbaridades. A maior parte desses
profissionais trabalhava clandestinamente.
A extração de dentes era
a maior função dos práticos. Parece que eles preferiam vender dentaduras.
Arrancava os dentes. Isso demorava um século. Depois tinha que ficar com a boca
sem dentes por muito tempo. Os práticos alegavam que a boca teria que ficar
murcha para a dentadura não ficar bamba. ---- Muitos desistiam da dentadura
para evitar o suplicio de ter que acostumar com aquela ferradura na boca. Os
dentistas práticos recomendavam que à medida que a dentadura nova fosse pegando
a gengiva, deveria ser raspada no local com o canivete. ---- O único
medicamento que eles conheciam era o cibazol, um comprimido para tirar dores e
que acabou tão desmoralizado que hoje além de não existir tornou-se sinônimo de
coisa que não vale nada.
As obturações
existiam, mas eram tratadas quando o dente já teria sido tomado quase todo.
Eram feitas em ouro que os dentistas compravam dos coveiros do cemitério,
verdadeiros mineradores nas covas dos defuntos. --- Os coveiros sabiam
perfeitamente onde teria sido enterrado um defunto com bastante ouro na boca. ----
Quase não existiam nesse tempo, em Candeias, túmulos. As pessoas eram
enterradas no chão.
Outra gambiarra dos
práticos era o pino do pivô, uma colocação de um dente postiço na raiz
aproveitada do dente natural. Para isso costumava-se usar para pino agulhas de
radiola. E quando o paciente usava o dente de mau jeito a fusão se desfazia, soltando
o dente postiço, ficando aquela ponta de pino exposta. A maior parte das
pessoas não voltava ao dentista e dava o seu sorriso com aqueles pinos
expostos. Era triste!
A
primeira vez que fui a um dentista está bem guardada nos labirintos da minha
memória. São cicatrizes psicológicas que jamais vão desaparecer de mim e que
para elas dificilmente poderiam existir uma plástica mental. ---- Lembro-me de
quando fui seguro na cadeira, a pedido do dentista, pelo Ximango, um negão de
todo tamanho. Isso por estar inquieto com um dente tumoroso e o rosto
todo inchado. Meu pai saiu de perto porque não quis ver o meu sofrimento. ----- Numa segunda vez lembro-me de que fui tocado com o
"ferrinho" com todo descuido no nervo de um dente doente. Só de me
lembrar disso, arrepiam-me as canelas.
Esta casa
branca, situada na Rua José Hilário, em Candeias, MG, antigamente ficava num
barranco quando a rua ainda não era calçada. Ali estava estabelecido o
gabinete dentário do Sr. Boanerges Pacheco, sem diploma, um dos chamados
"dentistas práticos". Num tempo que a odontologia ainda engatinhava
no Brasil e em Candeias estava parada. ----- No lugar da janela era a porta de
entrada para o gabinete, que não possuía sala de espera; e a clientela se
amontoava e aguardando a sua vez do lado de fora.
Nesse
tempo, em Candeias não havia dentistas formados. Eram apenas os chamados
práticos. Profissionais sem formação nenhuma. Era um prático ensinando ao
outro.
A imagem do
dentista me apavora. Aquele barulho de seus instrumentos me deixa impotente,
frágil e com medo até da morte. Eu não consigo ver o dentista como alguém que
vai me ajudar, vai me enfeitar a boca, tirar as dores e cuidar do meu sorriso.
Eu o vejo como um verdugo. A impressão que eu tenho é de que ele gosta de
judiar de mim. Se ao mexer em minha boca, o dentista der um sorriso qualquer,
eu me irrito. Se não abre a cara eu tenho medo.
Eu não queria
sentir isso, mas não está em mim. Eu já rezei, pedi a Deus para me tirar isso,
mas é tão difícil.
O ultimo dos
dentistas que mexeu em minha boca me pareceu não ser tão carrasco. Ele notou
que eu era um “cagão” e me deu papo. Entrou com uns assuntos diferentes, falou
de pescaria, e eu nada. Falou de futebol e eu nada. Falou de cerveja e eu nada.
Até que ele falou em música, de cantores que a mãe dele gostava e fora fã.
Perguntou-me se eu os tinha conhecido, como Jackson do Pandeiro, Carlos
Galhardo, Francisco Alves e Vicente Celestino. ---- Daí eu comecei a entrar na
dele.
Com esse assunto eu fui transportado há um tempo distante, vendo a minha mãe lavando roupa no tanque próximo da porta da cozinha de nossa casa, e sempre com uma música desses cantores na boca. O coração materno de Vicente Celestino; a Criança Feliz de Francisco Alves, a fascinação de Carlos Galhardo e a Sebastiana do Jacson do Pandeiro. ---- Daí ele me mandou abrir a boca e lembro-me apenas, de quando ele disse: Que vergonha, um gerente de Banco com uma cárie desse tamanho. E ligou o motorzinho... ---- Nesse momento não me faltou vontade de sair voando pela janela daquele consultório.
Ele encostou o
motorzinho, assentou-se de novo e perguntou-me sobre assuntos bancários, e como
eu era bancário ele conseguiu me deixar mais tranquilo. ---- Notei nesse dia,
que a odontologia tinha realmente melhorado em termos dos profissionais.
Precisavam acabar agora, com o jaleco branco, com o ferrinho, com as agulhadas
dos anestésicos e com o barulho do maldito motorzinho.
Mesmo com
a evolução da odontologia, longe daquele cheiro horrível dos produtos
odontológicos, daquela cadeira de Chessman, daquela broca assassina, do boticão
e do ferrinho maldito, então, ferramentas prioritárias dos dentistas, essas
lembranças ficaram tão bem entranhadas nos meus neurônios que a palavra
dentista ainda me assusta. A demora do tratamento. Parece-me que os dentistas
não dispensam clientes por falta de tempo e com isso vai dividindo o espaço com
todo mundo.
Apesar do
esforço que faço, durante anos, no sentido de me conscientizar sobre esta
questão, posso garantir que, ao entrar num consultório odontológico, sinto que
estou indo para um gabinete próprio para um suplício.
Eu
contava dezesseis anos quando fiz o meu primeiro tratamento de dentes. Até
então, eu não tinha consciência do que seria isso. Eu só tinha consciência que
tratamento era sinônimo de sofrimento. E para mim dentista era apenas para
arrancar os dentes e colocar uma dentadura no lugar.
Para esse
tratamento, eu procurei o Sr. Boanerges Pacheco. Um dentista prático que tinha
grande clientela por ter um preço módico. Mas essa modicidade tinha um preço
também. Lembro-me que fui ao seu gabinete (os práticos davam aos consultórios o
nome de gabinete) e fiz um orçamento para tratar três obturações. Isso demorou
três semanas. Eu já trazia comigo a maldita lembrança da minha apresentação ao
mundo dos dentistas, quando fui seguro pelo Ximango na cadeira, como se
estivesse sendo castigado por algum crime. Talvez, pelo meu estado apreensivo,
Boanerges evitava mexer por muito tempo na minha boca. Era um zás-trás e
pronto, já me mandava voltar num outro dia. Eu nunca entendi tanta demora.
Parecia que uma cárie não era uma simples corrosão e sim um esbarrancado.
Como eu
já fumava nesse tempo, o serviço incluía uma limpeza geral no final do
tratamento com um produto para clarear os dentes.
Assim, no
último dia, minutos antes desse processo de limpeza, Boanerges me pede licença
e entrou num pequeno banheiro que tinha no seu gabinete. Cá de fora, eu pude
receber os estrondos que os seus intestinos forneciam aos meus ouvidos. Depois
de algum tempo, ele sai, lá de dentro, sem passar as mãos por qualquer torneira
e as enfia dentro de minha boca a fim de isolar com algodão a pele dos dentes
onde iria usar o tal branqueador. Foi quando eu senti um cheiro horrível de
fezes.
Ao fazer
a aplicação daquele medicamento, nos meus dentes, comentou tranquilo: “O
Vadinho da Sota me falou que esse remédio tem gosto de bosta”.
Eu não
tive ânimo para achar graça do comentário. Não só pelo fato de nunca ter comido
bosta para identificar o gosto, mas com certeza ficou a suspeita de que o
cheiro havia sim, mas sei lá se era do remédio ou de suas mãos.
Armando
Melo de Castro
Candeias
MG Casos e Acasos.
(Cronica relacionada: A BOCA E A VAGINA -
Clique aqui: https://candeiasmg.blogspot.com/2011/08/boca-e-vagina.html
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Um comentário:
Armando, muito boa narrativa!
Poucos são os sessentões que não t~em medo de dentista, sempre devido traumas adiquiridos na infãncia, com os primeiros tratamentos, ainda na raça!É contagiante a forma como descreve os fatos que nos levam a visualizar a tal situação! Parabens!
celle
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