Hoje, como às vezes acontece comigo, amanheci com o desejo
veemente de colocar a minha conversa em dia com os Céus. Portanto, resolvi ir
até ao Cruzeiro do Josino, ponto preferido por mim para falar com Deus. Fui
pedir ajuda - entregar os meus pecados e agradecer tudo aquilo que recebo
diante da missão que me foi dada aqui neste mundo, no sentido de contribuir com
a obra da Sua criação.
Ali, aos pés daquela cruz campal, símbolo maior da redenção
cristã, onde, há sessenta anos eu faço as minhas orações e as minhas
meditações, abri um dos mais queridos estojos da minha infância e me encontrei
com Dona Ester. Era ela minha vizinha de quem eu guardo nítidas lembranças pelo
carinho que me dedicou, quando eu me encontrava na flor da idade. Muitas foram
às vezes que nos ajoelhamos aos pés daquela cruz e rezamos juntos. Agora, com
certeza, estará noutra das muitas moradas da casa do Pai (São João 14/2).
Que saudade eu senti naquele momento de Dona Ester!...
Retroagindo pela estrada do tempo, volto à minha infância e
sinto a presença de Dona Ester dando-me a sua melhor atenção como que alguém
muito importante para ela.
Natural da cidade de Itumirim/ MG, na região de Lavras, veio trazida para Candeias através das águas do destino como uma ave aquática extraviada da sua rota. Aqui, se aportou na busca de novos ares e de algo que pudesse atender a sua vida vazia, visto que teria vivido de preencher o vazio dos outros, sem nenhuma resposta.
Seu comportamento, involuntário, não atendia os preceitos da sociedade hipócrita e inescrupulosa. Época em que um agouro do destino arrebatava quaisquer sentimentos louváveis. Era um tempo em que a prostituição tinha diversos segmentos e, entre esses, a fome, a miséria e o meio de onde é feito o homem como produto excluso. Dona Ester era uma vítima social julgada como ré por um tribunal sem consciência.
Seu desejo de ter um lar lhe foi concedido por Deus. Contudo, os
filhos lhe foram negados. Casou-se, já idosa, com João de Paiva que lhe acolheu
após a sua travessia num revolto mar da vida. Desde então, se tornou integrante
da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, quando ostentava o seu vestido de
tricoline preto e uma fita de seda vermelha ao pescoço como insígnia da
confraria. Teria sido um presente do marido que a fez muito feliz. Aquele
vestido preto, talvez, tivesse dado a Dona Ester uma emoção muito maior do que
o branco vestido de noiva que jamais teria usado.
Agora, perante a Igreja Católica, parece que Dona Ester teria se
tornado filha de Deus por ter se casado de acordo com as suas regras.
Era uma vida modesta. Seu marido um pedreiro do padrão:
meia-colher e, às vezes, lhe faltava serviço. Dona Ester, com a sua hábil
maneira de economizar, fazia com que não lhes faltassem nada. Chegou a juntar
dinheiro com o qual comprou um rádio usado sendo, naquela época, um aparelho
caro, mas, que lhe proporcionava acompanhar, diariamente, o terço através da
Rádio Nove de Julho, de São Paulo. Emissora que veio, posteriormente, a ser
fechada pela Ditadura Militar e reaberta anos depois.
Dona Ester gostava de ir ao mato catar garavetos e sempre me
levava com ela, como companhia. E lá no mato, era aquela preocupação comigo:
"Armando! Cuidado, meu filho! Olha no chão para ver se não tem
cobra!"
E eu, com os meus olhos de menino descuidado, nem sei se olhava
para o chão. O que eu queria, no entanto, era encontrar as frutas do mato,
naquele tempo fartas na região de Candeias, como a guabiroba, goiabinha, pequi,
araçá, araticum, marmelada-de-cachorro e muitas outras espécies de frutas
silvestres das quais eu tanto gostava e que só existem, hoje, nas minhas
lembranças. Cada uma tinha o seu mês. A guabiroba, por exemplo, era de outubro
a novembro. A marmelada-de-cachorro era farta no mês de dezembro. No mês de
janeiro, os animais nadavam e rolavam no pequi. O araçá e o araticum perfumavam
o cerrado no mês de março.
Ainda guardo, na minha memória, um pé de limãozinho doce que
existia próximo de onde está, hoje, a COPASA, no Bairro Rio Branco. Como Dona
Ester gostava daqueles limõezinhos! O pé era muito alto e a gente tinha que
levar um bambu para apanhá-los. Às vezes, eu insistia em subir no pé para
colher a fruta da sua preferência, mas, ela não deixava. Temia que eu viesse a
cair do galho.
Dona Ester sabia tudo e me ensinava tudo. Eu a ouvia,
atentamente, quando falava. E como eu gostava de vê-la chamar-me de meu filho!
O meu coração tinha lugar para muitas mães e eu a coloquei dentro dele como uma
de minhas mães.
Éramos vizinhos de frente. Na sua casa, ela não comia nada
diferente sem guardar uma prova para mim. Ela criava uma carneira dentro de
casa e parece que o animal gostava de mim também. A ovelha era tida como filha.Tratada como “bitinha” da qual tirou lã até completar uma
colcha para se agasalhar como se fosse aquilo o calor do animal querido.
Quando a seca chegava e a chuva não vinha, íamos juntos molhar o
pé da cruz e pedir auxílio aos Céus. Devota fervorosa de São Benedito
e São José, dizia sempre que os seus santos nos aliviariam da seca
mandando chuva.
As pessoas que adoeciam na vizinhança tinham uma aliada fiel.
Preocupava-se com o doente como se fosse um parente seu.
Quanta saudade eu sinto de Dona Ester! Lembro-me de suas risadas
mostrando uma boca sem dentes. Exaltando as rugas de um rosto sofrido. Os cabelos
brancos levando a saúde e matando a juventude. Um corpo flácido e fatigado pelo
tempo dando mostras de uma vida em decadência; coberto, constantemente, por um
vestido de tecido grosso, descorado e desgastado. Um corpo sem o viço de
outrora, estampado numa velha fotografia amarelada e dependurada junto de um
quadro da Santíssima Trindade na sala de sua casa.
Onde quer que você esteja Dona Ester, obrigado pela presença constante na história da minha vida. Receba de coração o meu o meu abraço, o meu beijo, o meu carinho e a minha saudade. Com
certeza, a paz do Senhor estará sempre com você porque você merece.
Armando Melo de Castro
Candeias MG Casos e Acasos.
Um comentário:
Um lindo pleito de gratidão e saudades!
celle
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