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quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O RONCO DO DEFUNTO

                                                      BAIRRO RIO BRANCO CANDEIAS MG
   
Eu fui criado dentro de um conceito religioso próximo do rigoroso. Se não participasse da missa aos domingos, não poderia sair de casa. Se não fosse ao catecismo ministrado pela catequista, Maria Brasileira, neta do Padre Américo, não poderia ir à matinê do cinema. ---- Minha avó me colocou na irmandade de Santo Antônio existente em Divinópolis, quando eu tinha apenas um ano de idade. E ela sempre dizia, “Olha meu filho não se esqueça de dar um pãozinho para os pobres na primeira terça feira do mês.” E eu faço isso há quase setenta anos.

O meu outro irmão é São Vicente de Paula. Meu avô, João José de Castro (Delminda), me colocou na irmandade, a chamada Conferência, quando eu tinha oito anos. Aos domingos, havia a reunião dos confrades irmãos de São Vicente, na Igreja do Senhor Bom Jesus. E eu era o encarregado de correr a sacola entre os irmãos. Meu avô sempre me dava uma moedinha para que eu, também, participasse daquela coleta.

Mas, a bem da verdade, não foi por aí que em mim, estabeleceu-se o conceito religioso. Foi uma ação convertida em obras que me fez sentir mais próximo de Deus. --- Durante anos participo das atividades da Conferência, como confrade. O meu compromisso com São Vicente de Paula nunca foi embaraçado. Mesmo ao mudar de cidade, sempre me procurei marcar a minha presença.

Eu acho que ter uma religião é ter uma fé bem administrada. E a fé só é bem praticada diante do sentimento da caridade. A fé sem obras é morta disse São Tiago, em 2-14,22.

Antes dessas aposentadorias, atualmente existentes, a pobreza ardia. A Vila Vicentina de Candeias vivia de parcos recursos. Suas instalações eram precárias. A miséria levedava ali naquele canto da cidade. A situação dos idosos era lastimável. Nos dias atuais, essa instituição dá um tratamento digno ao necessitado, mas antigamente a coisa era triste, muito triste. 

O cristão trabalhava a vida inteira e quando não tinha mais forças para tal e nem algum parente para acolhê-lo, era entregue para a Vila Vicentina onde terminava os seus dias na mais completa miséria. ----- Não porque a Vila fosse omissa, mas pela falta de recursos. A procura era maior do que a oferta. E é por isso que, até hoje, existe certo preconceito sobre levar alguém para a Vila, apesar das melhoras vividas atualmente naquela instituição.

A Sociedade não tinha ajuda governamental. E podia contar, apenas, com a ajuda da comunidade. A maioria das pessoas que ajudava era pobre também. Comumente, as pessoas faziam promessas de dar algo para os pobres. O que, a bem da verdade, não era uma caridade, era um negócio feito com a sua própria fé.

Os fazendeiros forneciam alguma coisa, quase sempre um pouco de feijão com arroz. Isso, naturalmente, porque se viam comprometidos, moralmente, com a instituição pelos pobres, às vezes, seus antigos empregados. Parte da população dava uma ínfima contribuição, pouco representativa, para completar o sustento daquela casa na qual faltava uma alimentação substanciosa, médicos, remédios etc. Muitos ali morriam à míngua.

Foi nesse tempo em que eu convivi com um dos candeenses mais caridosos da nossa cidade: Alvino Ferreira.

A Rua Coronel João Afonso terminava onde está localizada a Igreja do Rosário. Dali para baixo era a estrada cercada de mato e à beira da estrada, antes de chegar até a ponte do Bairro Rio Branco, existiam diversas moitas de bambu. Um pouco antes da ponte, à direita de quem vai, tinha um pequeno barraco onde morava um cidadão idoso, chamado Sebastião. Um pobre homem muito maltratado pela vida e que deixava apiedado as pessoas que o visitava. Era ele quem preparava a sua comida; os seus chás e até lavava as suas roupas.  ----- O confrade que o visitasse pouco poderia fazer a não ser levar algo para a sua subsistência fornecidos pela Vila, como também outras pessoas que o visitava naturalmente para levar algo. -- A casa não tinha água encanada, longe disso. ----- os fundos dava acesso ao córrego onde hoje está instalada a Copasa. A água tinha que ser apanhada no córrego.

Junto à ponte e próximo dali, ajuntavam-se muitas lavadeiras de roupas, em virtude da fragilidade do fornecimento de água encanada nesse tempo. A tapera pertencia ao patrimônio da Igreja Católica, recebida em doação e que teria sido transferida como empréstimo para a Vila para ceder a algum casal de mendigo. Esse senhor teria ficado viúvo não fazia muito tempo e teria ficado sozinho como morador da casa.

 As lavadeiras de roupas de frequência diária, comumente iam até ao pobre mendigo, levavam-lhe água e limpavam a casa. Enfim, aquele homem solitário teria sido um trabalhador casado, ficado viúvo e abandonado pelos filhos que partiram para outras terras em busca de maiores recursos. E, naquele tempo, as pessoas iam e não sabiam quando voltavam e, muitas vezes, nunca mais voltavam e nem davam notícias.

Certo dia, uma lavadeira de roupas, chamada Alzira, ao adentrar a tapera para auxiliar o pobre velho, o encontrou morto caído da cama. Com certeza, teria sofrido um infarto fulminante ou um derrame qualquer.

A Vila Vicentina fora acionada e, imediatamente, alguns membros avisados. Alvino Ferreira, então o responsável pela instituição, convocou-me, pela primeira vez, para auxiliá-lo a dar banho no morto. Não havia, nesse tempo, funerárias em Candeias e os mortos eram preparados em casa para serem enterrados.

Tenho nítida lembrança de quando Alvino colocou um avental de vaqueta, doado pelo sapateiro Joaquim Lopes, segurou o morto de pé pelas costas sobre uma bacia enquanto eu, um pouco ressabiado, com uma bucha, fui esfregando o cadáver com sabão preto. Depois seria enxaguado com um regador. Não tinha sequer um sabonete para banhar o defunto.

Nessa mexida, o morto deu um roncado e eu levei o maior susto do mundo, e, nessa hora, “perninha pra que te quero!” Joguei o regador para um lado e sai correndo com medo. Eu era, ainda, um menino/adolescente e não tinha a minha coragem amadurecida. Mas como o Alvino não correu, eu voltei vagarosamente. ----- Posteriormente, não tive mais medo após ter sido orientado.

O morto teve o seu cabelo cortado e barbeado para que fosse enterrado com dignidade. Alvino Ferreira fazia isso com prazer, com alegria e mesmo sem pertencer a Vila nunca recebeu nada em troca desse trabalho.

À tona de minha memória, vem à miséria levada a efeito naquela casa na qual aquele pobre homem foi extinto, após longos anos de vida. Sem esposa, sem filhos e sem ninguém. Aí eu penso: a vida não vale nada se não confiarmos em Deus. Aquele infeliz não tinha nada para deixar, mas, poderia estar levando consigo muita coisa desta vida. Ou poderia estar, diante da desproporcionalidade social em que vivera, liquidando uma dívida feita sabe Deus onde, como dizem os espíritas!

A vida é de uma desigualdade patente e a morte é um mistério insondável. Ambas andam juntas, porém, em silêncio. As religiões usam delas fazendo incutir nas pessoas uma abstração religiosa. Parece que as religiões pensam que têm privilégio sobre o incognoscível. Infelizmente as religiões não têm sido sinônimo de caridade. A caridade, a meu ver, está dentro do coração de cada um de nós. E esta é a verdadeira religião porque é o fator principal para a Obra da Criação de Deus.

Armando Melo de Castro
Candeias – Minas Gerais

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