Eu fui criado dentro de um conceito religioso próximo do rigoroso. Se não participasse da missa aos domingos, não poderia sair de casa. Se não fosse ao catecismo ministrado pela catequista, Maria Brasileira, neta do Padre Américo, não poderia ir à matinê do cinema. ---- Minha avó me colocou na irmandade de Santo Antônio existente em Divinópolis, quando eu tinha apenas um ano de idade. E ela sempre dizia, “Olha meu filho não se esqueça de dar um pãozinho para os pobres na primeira terça feira do mês.” E eu faço isso há quase setenta anos.
O meu
outro irmão é São Vicente de Paula. Meu avô, João José de Castro (Delminda), me
colocou na irmandade, a chamada Conferência, quando eu tinha oito anos. Aos
domingos, havia a reunião dos confrades irmãos de São Vicente, na Igreja do
Senhor Bom Jesus. E eu era o encarregado de correr a sacola entre os irmãos.
Meu avô sempre me dava uma moedinha para que eu, também, participasse daquela
coleta.
Mas, a
bem da verdade, não foi por aí que em mim, estabeleceu-se o conceito religioso.
Foi uma ação convertida em obras que me fez sentir mais próximo de Deus.
--- Durante anos participo das atividades da Conferência, como confrade. O meu
compromisso com São Vicente de Paula nunca foi embaraçado. Mesmo ao mudar de
cidade, sempre me procurei marcar a minha presença.
Eu acho
que ter uma religião é ter uma fé bem administrada. E a fé só é bem praticada
diante do sentimento da caridade. A fé sem obras é morta disse São Tiago, em
2-14,22.
Antes
dessas aposentadorias, atualmente existentes, a pobreza ardia. A Vila Vicentina
de Candeias vivia de parcos recursos. Suas instalações eram precárias. A
miséria levedava ali naquele canto da cidade. A situação dos idosos era
lastimável. Nos dias atuais, essa instituição dá um tratamento digno ao
necessitado, mas antigamente a coisa era triste, muito triste.
O cristão trabalhava a vida inteira e quando não tinha mais forças para tal e nem algum parente para acolhê-lo, era entregue para a Vila Vicentina onde terminava os seus dias na mais completa miséria. ----- Não porque a Vila fosse omissa, mas pela falta de recursos. A procura era maior do que a oferta. E é por isso que, até hoje, existe certo preconceito sobre levar alguém para a Vila, apesar das melhoras vividas atualmente naquela instituição.
A
Sociedade não tinha ajuda governamental. E podia contar, apenas, com a ajuda da
comunidade. A maioria das pessoas que ajudava era pobre também. Comumente, as
pessoas faziam promessas de dar algo para os pobres. O que, a bem da verdade,
não era uma caridade, era um negócio feito com a sua própria fé.
Os
fazendeiros forneciam alguma coisa, quase sempre um pouco de feijão com arroz.
Isso, naturalmente, porque se viam comprometidos, moralmente, com a instituição
pelos pobres, às vezes, seus antigos empregados.
Parte da população dava uma ínfima contribuição, pouco representativa, para
completar o sustento daquela casa na qual faltava uma alimentação substanciosa,
médicos, remédios etc. Muitos ali morriam à míngua.
Foi nesse
tempo em que eu convivi com um dos candeenses mais caridosos da nossa cidade:
Alvino Ferreira.
A Rua
Coronel João Afonso terminava onde está localizada a Igreja do Rosário. Dali
para baixo era a estrada cercada de mato e à beira da estrada, antes de chegar
até a ponte do Bairro Rio Branco, existiam diversas moitas de bambu. Um pouco
antes da ponte, à direita de quem vai, tinha um pequeno barraco onde morava um
cidadão idoso, chamado Sebastião. Um pobre homem muito maltratado pela vida e
que deixava apiedado as pessoas que o visitava. Era ele quem preparava a
sua comida; os seus chás e até lavava as suas roupas. ----- O confrade
que o visitasse pouco poderia fazer a não ser levar algo para a sua subsistência
fornecidos pela Vila, como também outras pessoas que o visitava naturalmente para
levar algo. -- A casa
não tinha água encanada, longe disso. ----- os fundos dava acesso ao córrego
onde hoje está instalada a Copasa. A água tinha que ser apanhada no córrego.
Junto à
ponte e próximo dali, ajuntavam-se muitas lavadeiras de roupas, em virtude da
fragilidade do fornecimento de água encanada nesse tempo. A tapera pertencia ao
patrimônio da Igreja Católica, recebida em doação e que teria sido transferida
como empréstimo para a Vila para ceder a algum casal de mendigo. Esse senhor
teria ficado viúvo não fazia muito tempo e teria ficado sozinho como morador da
casa.
As lavadeiras de roupas de frequência diária,
comumente iam até ao pobre mendigo, levavam-lhe água e limpavam a casa. Enfim,
aquele homem solitário teria sido um trabalhador casado, ficado viúvo e
abandonado pelos filhos que partiram para outras terras em busca de maiores
recursos. E, naquele tempo, as pessoas iam e não sabiam quando voltavam e,
muitas vezes, nunca mais voltavam e nem davam notícias.
Certo
dia, uma lavadeira de roupas, chamada Alzira, ao adentrar a tapera para
auxiliar o pobre velho, o encontrou morto caído da cama. Com certeza, teria sofrido
um infarto fulminante ou um derrame qualquer.
A Vila
Vicentina fora acionada e, imediatamente, alguns membros avisados. Alvino
Ferreira, então o responsável pela instituição, convocou-me, pela primeira vez,
para auxiliá-lo a dar banho no morto. Não havia, nesse tempo, funerárias em
Candeias e os mortos eram preparados em casa para serem enterrados.
Tenho
nítida lembrança de quando Alvino colocou um avental de vaqueta, doado pelo
sapateiro Joaquim Lopes, segurou o morto de pé pelas costas sobre uma bacia
enquanto eu, um pouco ressabiado, com uma bucha, fui esfregando o cadáver com
sabão preto. Depois seria enxaguado com um regador. Não tinha sequer um
sabonete para banhar o defunto.
Nessa
mexida, o morto deu um roncado e eu levei o maior susto do mundo, e, nessa
hora, “perninha pra que te quero!” Joguei o regador para um lado e sai correndo
com medo. Eu era, ainda, um menino/adolescente e não tinha a minha coragem
amadurecida. Mas como o Alvino não correu, eu voltei vagarosamente. -----
Posteriormente, não tive mais medo após ter sido orientado.
O morto
teve o seu cabelo cortado e barbeado para que fosse enterrado com dignidade.
Alvino Ferreira fazia isso com prazer, com alegria e mesmo sem pertencer a Vila
nunca recebeu nada em troca desse trabalho.
À tona de
minha memória, vem à miséria levada a efeito naquela casa na qual aquele pobre
homem foi extinto, após longos anos de vida. Sem esposa, sem filhos e sem
ninguém. Aí eu penso: a vida não vale nada se não confiarmos em Deus. Aquele
infeliz não tinha nada para deixar, mas, poderia estar levando consigo muita
coisa desta vida. Ou poderia estar, diante da desproporcionalidade social em
que vivera, liquidando uma dívida feita sabe Deus onde, como dizem os espíritas!
A vida é
de uma desigualdade patente e a morte é um mistério insondável. Ambas andam
juntas, porém, em silêncio. As religiões usam delas fazendo incutir nas pessoas
uma abstração religiosa. Parece que as religiões pensam que têm privilégio
sobre o incognoscível. Infelizmente as religiões não têm sido sinônimo de
caridade. A caridade, a meu ver, está dentro do coração de cada um de nós. E
esta é a verdadeira religião porque é o fator principal para a Obra da Criação
de Deus.
Armando
Melo de Castro
Candeias
– Minas Gerais
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