Hoje,
como às vezes acontece comigo, amanheci com o desejo veemente de colocar a
minha conversa em dia com os Céus. Portanto, resolvi ir até ao Cruzeiro do
Josino, ponto preferido por mim para falar com Deus. Fui pedir ajuda - entregar
os meus pecados e agradecer tudo aquilo que recebo diante da missão que me foi
dada aqui neste mundo, no sentido de contribuir com a obra da Sua criação.
Ali,
aos pés daquela cruz campal, símbolo maior da redenção cristã, onde, há mais de
sessenta anos eu faço as minhas orações e as minhas meditações, abri um dos
mais queridos estojos da minha infância e me encontrei com Dona Ester a minha
antiga vizinha de quem eu guardo nítidas lembranças pelo carinho que me
dedicou, quando eu me encontrava ainda, no verdor dos meus anos. Muitas
foram às vezes que nos ajoelhamos aos pés daquela cruz e rezamos juntos. Agora,
com certeza, estará noutra das muitas moradas da casa do Pai Celestial.
Que
saudade eu senti naquele momento de Dona Ester!...
Retroagindo
pela estrada do tempo, volto à minha infância e sinto a presença de Dona Ester
dando-me a sua melhor atenção como que alguém muito importante para ela.
Natural
da cidade de Itumirim/ MG, na região de Lavras, veio trazida para Candeias
através das águas do destino como uma ave aquática extraviada da sua rota.
Aqui, se aportou na busca de novos ares e de algo que pudesse atender a sua
vida vazia, visto que teria vivido de preencher o vazio dos outros, sem nenhuma
resposta.
Seu
comportamento, involuntário, não atendia os preceitos da sociedade hipócrita e
escrupulosa. Época em que um agouro do destino arrebatava quaisquer
sentimentos louváveis. Era um tempo em que a prostituição tinha diversos
segmentos e, entre esses, a fome, a miséria e o meio de onde é feito o homem
como produto excluso. Dona Ester era uma vítima social julgada como ré por um
tribunal sem consciência. Teria sido ela uma prostituta que chegou à
Candeias, vinda pelas águas da sarjeta.
Seu
desejo de ter um lar lhe foi concedido por Deus com o avanço da idade. Contudo,
os filhos lhe teriam sido negados. Casou-se, já idosa, com João de Paiva que
lhe acolheu após a sua travessia nesse revolto mar da vida. Desde então, se
tornou integrante da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, quando ostentava o
seu vestido de tricoline preto e uma fita de seda vermelha ao pescoço como
insígnia da confraria. Teria sido um presente do marido que a fez muito feliz.
Aquele vestido preto, talvez, tivesse dado a Dona Ester uma emoção muito maior
do que o branco vestido de noiva que jamais teria usado.
Agora,
perante a Igreja Católica, parece que Dona Ester teria se tornado filha de Deus
por ter se casado de acordo com as suas regras. Até então, Dona Ester teria
sido refutada pela igreja.
Era uma
vida modesta. Seu marido um pedreiro do padrão: meia-colher e, às vezes, lhe
faltava serviço. Dona Ester, com a sua hábil maneira de economizar, fazia com
que não lhes faltassem nada. Chegou a juntar dinheiro com o qual comprou um
rádio usado sendo, naquela época, um aparelho caro, mas, que lhe proporcionava
acompanhar, diariamente, o terço através da Rádio Nove de Julho, de São Paulo.
Dona
Ester gostava de ir ao mato catar gravetos e sempre me levava com ela, como
companhia. E lá no mato, era aquela preocupação comigo: "Armando!
Cuidado, meu filho! Olha no chão para ver se não tem cobra!”.
E eu,
com os meus olhos de menino descuidado, nem sei se olhava para o chão. O que eu
queria, no entanto, era encontrar as frutas do mato, naquele tempo fartas na
região de Candeias, como a guabiroba, goiabinha, pequi, araçá, araticum,
marmelada-de-cachorro e muitas outras espécies de frutas silvestres das quais
eu tanto gostava e que só existem, hoje, nas minhas lembranças.
Ainda
guardo, na minha memória, um pé de limãozinho doce que existia próximo de onde
está hoje, a COPASA, no Bairro Rio Branco. Como Dona Ester gostava daqueles
limõezinhos! O pé era muito alto e a gente tinha que levar um bambu para
apanhá-los. Às vezes, eu insistia em subir no pé para colher a fruta da sua
preferência, mas ela não deixava. Temia que eu viesse a cair do galho.
Dona
Ester sabia tudo e me ensinava tudo. Eu a ouvia, atentamente, quando falava. E
como eu gostava de vê-la chamar-me de meu filho! O meu coração tinha lugar para
muitas mães e eu a coloquei dentro dele como uma de minhas mães.
Éramos
vizinhos de frente. Na sua casa, ela não comia nada diferente sem guardar uma
prova para mim. Ela criava uma carneira dentro de casa e parece que o animal
gostava de mim também. A ovelha era tida como filha. Tratada como “bitinha”
da qual tirou lã até completar uma colcha para se agasalhar como se fosse
aquilo o calor do animal querido.
Quando
a seca chegava e a chuva não vinha, íamos juntos molhar o pé da cruz e pedir
auxílio aos Céus. Devota fervorosa de São Benedito e São José, dizia
sempre que os seus santos nos aliviariam da seca mandando chuva.
As
pessoas que adoeciam na vizinhança tinham uma aliada fiel. Preocupava-se com o
doente como se fosse um parente seu.
Quanta
saudade eu sinto de Dona Ester! Lembro-me de suas risadas mostrando uma boca
sem dentes. Exaltando as rugas de um rosto sofrido. Os cabelos brancos levando
a saúde e matando a juventude. Um corpo flácido e fatigado pelo tempo dando
mostras de uma vida em decadência; coberto, constantemente, por um vestido de
tecido grosso, descorado e desgastado. Um corpo sem o viço de outrora, estampado
numa velha fotografia amarelada e dependurada junto de um quadro da Santíssima
Trindade na sala de sua casa.
Onde
quer que você esteja Dona Ester, obrigado pela presença constante na história
da minha vida. Receba de coração o meu abraço, o meu beijo, o meu carinho
e a minha saudade. Com certeza, a paz do Senhor estará sempre com você porque
você merece.
Armando Melo de Castro
Candeias
MG Casos e Acasos.
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