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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

ERA UMA VEZ, UM MOLHO DE PIMENTA VERDE.


Uma boa amizade é um presente de Deus. Amizade é sinônimo de admiração, dedicação e simpatia a uma pessoa amiga. É a união de energia, de alegria, segurança e bem estar; é companheirismo; é sentimento de profundo respeito entre pessoas; é algo que brota de dentro dos nossos corações. A verdadeira amizade pode ser considerada muito próxima do amor. Trata-se de um sentimento que pode ser recíproco até entre o homem e os animais, haja vista, a amizade entre o ser humano e o cachorro. Portanto, entendo que o verdadeiro amigo é aquele que nunca decepciona porque com ele as coisas ocorrem às claras e com cautela.

E a decepção? --- A decepção é um sentimento triste; que machuca; que desaponta de forma cruel e pode ficar cravada em nossa memória pelo resto da vida. Mesmo que não haja ressentimento, a lembrança permanece como uma nódoa ou cicatriz que não conseguimos removê-las de nossa memória. Mesmo que venha ser um fato que envolve um vidro de molho de pimenta verde.

Na década de 70 eu morava na cidade de Divinópolis, e era subgerente da Agência do Banco do Estado de Minas Gerais. --- O meu rol de amigos era em sua maioria clientes do Banco. E entre eles havia um pelo qual a amizade era maior. Chamava-se Moacir e tinha uma loja de pneus.

--- Moacir tinha os seus 45 anos, estatura mediana, cabelos claros,  alegre, conversa mansa, tratável, honesto e trabalhador. Na cidade era amigo dos amigos. Prestativo, não media esforços para ajudar,  numa dificuldade, aqueles que ele sempre chamava de “amigão”. --- Eu o tinha entre um dos mais chegados, senão o mais próximo do meu rol de amigos. ----

Comumente nós encontrávamos reunidos numa mesa do Bar do Zé galinha, ou no final da Rua Goiás, no Bar da Costela de Boi; em alguma festa, ou junto à churrasqueira da sua casa tomando uma cervejinha e uma pinguinha da boa, chamada Cristalina do Picão, que um amigo seu da cidade de Martinho Campos, leva-lhe Quando ia a Divinópolis.

Por várias vezes estive em sua casa, dada a minha amizade que se estendia à sua esposa, seus dois filhos, seus pais e seus irmãos.  Certo dia, quando eu me preparava para ir à cidade de Formiga, assistir, numa festa de exposição, um Show do Cantor Sergio Reis, então no auge da fama, o meu carro deu um problema quando eu trafegava pela Avenida 1º de Junho. Foi sorte porque eu iria ficar na estrada nesse dia.

O problema do veículo, na parte elétrica, não teria como ser resolvido àquelas horas da tarde num sábado. ---- Enquanto eu estou ali ao lado do carro, lamentando o que ocorria, Moacir passa, me vê e para, naturalmente querendo saber se eu estava com algum problema. E diante da resposta positiva, disse-me, energicamente: "pode viajar sossegado. Deixe o carro onde está, eu vou providenciar o mecânico, para vir busca-lo ainda hoje. Você vai no meu carro,  pois eu tenho a caminhonete".

Era um Ford Corcel II verde e novo. --- Eu tentei dispensar o favor, mas foi inútil. --- Eu voltaria no domingo à noite, porque indo até Formiga, chegaria à Candeias. Isso era mais ou menos umas seis horas da tarde. --- Combinei, assim, de lhe entregar o carro na segunda feira. E foi o que fiz, tão logo  cheguei de volta da viagem.

 No ato da devolução do carro deveria ser, mais ou menos, umas dez horas da manhã. Moacir insistiu de todas as maneiras que eu fosse almoçar com ele em sua casa, pois naquela dia havia no seu almoço um manjar especial, um surubim do São Francisco. Um peixe dos mais cobiçados e que proporcionaria uma moqueca especial.

Ele já contara com a minha presença, porque um surubim teria sido o tema de nossa conversa dias antes.  Realmente, eu não deveria dispensar tão insistente convite, mesmo porque, o peixe estaria sendo um almoço especial por ocasião do aniversário da senhora sua mãe, grande apreciadora daquele prato delicioso; e era de meu desejo cumprimenta-la pelo aniversário.

Aceitei e o acompanhei. Na sua casa, naquele clima de festa, numa baita segunda feira, eu assentado à mesa junto de sua esposa, a senhora sua mãe e os filhos, eu degustava aquele prato delicioso, quando apareceu um vidro de molho verde. Ele serviu e me ofereceu. Eu aceitei e experimentei e achei o molho realmente delicioso acrescentado na moqueca.

Vi que se tratava de um molho caseiro e sem nenhuma pretensão perguntei: De que é feito esse molho Moacir? E a resposta foi ríspida, seca, como se eu tivesse dirigido uma ofensa, cheguei a pensar que ele estava brincando, mas não. Estava falando sério: 

“Cê desculpe, mas essa receita nós não damos para ninguém não... Nós  não gostamos de oferecer desse molho para a pessoa não pedir receita..." 

Foi uma pergunta, uma resposta e um silêncio, que jamais se apagou dos meus ouvidos. Eu não havia pedido nenhuma receita; eu não queria receita, eu apenas fiz uma pergunta porque era um sabor diferente além da pimenta. --- Houve um pequeno silêncio interrompido pela sua esposa, que se propôs a falar da cabeça do peixe; do pirão e do gosto da sogra pela moqueca.

Anos depois, Moacir vítima de um câncer faleceu. Eu não residia mais em Divinópolis, mas informado de sua morte viajei para participar do seu velório. Vendo-o inerte naquele caixão, fermentou-me na mente as boas lembranças.  Eu sentia muito a morte daquele amigo com o qual eu tive uma grande convivência. Contudo lamentei, pois não teria expulsado de minha memória a minha pergunta sobre o molho de pimenta e a sua resposta ríspida, de mau jeito traduzindo todo o egoísmo impróprio para um amigo de verdade.

-- Eu queria muito ter esquecido a história do molho, mas aquela lembrança triste permanecia na minha memória.  Eu queria tanto ter esquecido o choque de sua resposta a uma pergunta que me jogou num silêncio de constrangimento. Vendo o meu amigo ali, próximo de desaparecer para sempre e eu sobre as boas lembranças de uma boa amizade, senti, também, arder nos meus olhos um ardume de pimentas.

O tempo já teria passado e a distância não teria desfeito uma boa amizade. contudo entre as boas lembranças permanecia, também, a decepção.  Hoje, após mais  de 30 anos  de sua morte, ainda consigo me lembrar de Moacir, respondendo a minha pergunta sem olhar para mim e com o olhar fixo no seu prato. ----- Eu queria saber explicar o que representa isso, mas não sei. Eu nunca fiquei ressentido e nem magoado com ele. Eu só não queria ouvi-lo falar daquele jeito comigo, uma simples frase, que desmoronou todo um diálogo. ----  Onde quer que esteja meu amigo Moacir, perdoe-me por estar falando nisso e receba o meu abraço. ---

Armando Melo de Castro
Candeias MG Casos e Acasos.

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