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quinta-feira, 26 de abril de 2012

AS QUIMERAS DO TAZINHO.

                                                    
Chafariz do Sansão, antigo ponto de encontro.

Remexendo no armário da minha memória, encontro-me no ano de 1955, com meu companheiro de infância chamado Baltazar, conhecido mais por Tazinho. 

Magricelo, cabelos lisos, dentes amontoados, nariz pontudo, olhos fundos, sobrancelhas largas. Tudo isso formando um rosto miúdo e mal feito. Não me lembro do seu sobrenome e não faço ideia a qual família pertencia. Sei apenas que era criado por seu avô, um senhor baixo, gordo e viúvo que vendia produtos da roça de porta em porta, especialmente, queijos, polvilho e ovos.

Tazinho, à vista dos colegas, era muito mentiroso. Dizia-se filho de um homem rico, todavia, ninguém, jamais, vira tal pai sob os céus de Candeias. Sua mãe morava na cidade de São Paulo e, segundo o seu avô, era empregada doméstica. 

Antigamente, a viagem de Candeias para São Paulo era muito difícil. Assim, ela aparecia na terrinha, talvez, uma vez por ano, quando muito. ----- Baltazar, com certeza, foi o resultado de um relacionamento extraconjugal entre a sua mãe e o patrão. Era o que diziam as más línguas. Teria sido trazido na barriga da mãe, em uma das raras vezes em que esta vinha visitar os seus pais. 

Tão logo deu a luz ao filho, voltou para São Paulo que era, naquela época, a terra prometida, chamada de terra boa, terra da garoa, deixando a cria aos cuidados dos pais já idosos cuja avó, logo depois, morreu. Dessa maneira, o neto ficou aos cuidados exclusivos do avô e de uma vizinha caridosa que o auxiliava nos cuidados com o garoto.-----  Parece-me que, naquele tempo, já existia esse tipo de comportamento tão evidente nos dias atuais.

Sei que, durante a nossa época de adolescentes, ele morava no Bairro da Gruta. Era um rapazinho cheio de projetos de vida. Tinha uma maneira muito particular de ver as coisas. Parecia ser inteligente, autoconfiante, curioso, estudioso, gostava de ler e tinha ideias que, às vezes, impressionava os seus colegas. Habitualmente, se vangloriava ao comentar sobre um pai que nunca teria visto e de uma mãe que se limitava a lhe enviar, mensalmente, uma quantia em dinheiro o que lhe dava alguns privilégios perante a nossa turma de meninos pobres. Não chamava o seu avô como tal e sim de padrinho. Soubesse eu, naquele tempo, o significado de visionário ou excêntrico lhe teria colocado um desses adjetivos.

Muitos de seus colegas, apesar de terem seus pais e mães presentes, sentiam uma ponta de inveja daquele companheiro excluso dos seus pais que, entretanto, não levava isso em conta tirando, ainda, a diferença no “gogó”. Com o seu jeito esnobe; se julgava superior a tudo e a todos. Tudo dele era melhor. Dizia-nos que um dia haveríamos de vê-lo desfilar em um carrão pelas ruas de Candeias.

Após os seus catorze anos de idade, Baltazar sumiu. Ninguém mais o viu. Acreditava-se que fora para São Paulo viver em companhia de sua mãe. Contudo, ele continuou em nossas lembranças como uma incógnita. E não era raro algum colega exclamar: “O que terá sido feito do fazendo o do Tazinho?”.

Flávio Ribeiro, que não o suportava, lhe dizia sempre quando ele desconfiava que alguém estaria lhe mentindo ele dizia: " Sai pra lá Tazinho".

Naquela época, o “jeans” tomava o lugar do brim e as camisas volta-ao-mundo substituíam o morim e o fustão, as japonas e jaquetas faziam desaparecer as pobres blusas de flanela e a cueca Zorba colorida vinha para enfeitar a intimidade masculina.

Nesse píncaro de transformação social, diante de um soar da voz de Elvis Presley, das canções dos Beatles, de Roberto Carlos e a sua Jovem Guarda, do espírito solto de James Dean sobre uma moto barulhenta, aparece-nos, depois de ter se ausentado por uns quatro anos, como uma entidade evocada em uma mesa de concentração espírita, a imagem transformada de Tazinho...

Baltazar estava muito bem vestido, andando como se estivesse passeando sobre ovos na paróquia candeense. Chegou junto à roda de amigos, comumente reunida no chafariz do Sansão, onde os mais aquinhoados pagavam por um copo de cerveja, em uma prazerosa seresta ao ar livre.

Nós, candeenses arraigados, enraizados e ferrados em nossos costumes não teríamos onde e nem com o quê comprar indumentárias tão rigorosas. Éramos, portanto, a turma da cueca samba-canção recentes membros da tribo dos cafonas.

Enquanto o Flávio Ribeiro tocava um violão e puxava as canções de seus ídolos (Ray Charles, Nilo Amaro e seus Cantores de Ébano, mais os Mirins com a sua sertaneja “Barbaridade”), nós, os outros, fazíamos o coral do refrão.

Dessa maneira, somado ao grupo, após um tempo de ausência, desfilando seu visual moderno, estava o Baltazar em pé como se estivesse fazendo um discurso e se fazendo acompanhar por um jovem paulista, mais ou menos, de sua idade.

Se antes, Baltazar teria esnobado o dia de sua volta, imagina-se agora, diante desse prometido dia! E assim começou com a interrupção do som do violão:

---Vejo que os meus amigos continuam na mesma! Vestindo as mesmas roupas! Serrando um copinho de cerveja aqui outro ali! É pena que vocês não tenham a coragem que eu tive, arrancando-me para São Paulo em busca de dias melhores. Vocês estão fadados à pobreza. Eu, em São Paulo , estou faturando, mensalmente, quatro salários mínimos, o que não é uma “tutaméia” trabalhando como auxiliar de escritório.

Diante dessa exaltação, Flavio meteu os dedos no violão e já puxou a “Barbaridade” dizendo antes, vamos oferecer uma música para o rei dos mentirosos:

Barbaridade, uma musica muito antiga. ( Se quiser vê-la clique aqui:https://www.letras.mus.br/os-mirins/473669/




Diante daquelas circunstâncias, Baltazar afastou-se com o seu amigo e nunca mais foi visto.

Durante a Semana Santa passada, quando me encontrava no Banco Itaú, aguardando o atendimento pelo Caixa, tomou assento, junto a mim, um cidadão da cabeça, totalmente, pelada. Tinha um olhar tristonho e desanimado, enquanto conversava com uma pessoa ao seu lado tendo a voz bastante fanhosa. Suas mãos estavam despigmentadas pelo vitiligo. Suscintamente, falava do seu tempo em Candeias e da saudade que guardava no coração dos dias de sua infância. Observei-lhe uma pinta, logo abaixo da orelha esquerda, o que me fez suspeitar tratar-se do Baltazar. Estava sem os dentes amontoados, sem o corpo magro que, agora, apenas balançava dentro das roupas como uma caixa de ossos. Baltazar estava totalmente diferente.

Puxei conversa e lhe perguntei:

---Boa tarde! Como o senhor se chama?

---Boa tarde. Meu nome é Baltazar.

---Por acaso, você é o Tazinho!?

---Uê, você me conhece?

---Sim, fomos meninos juntos aqui, em Candeias.

---E quem é você?

---Sou o Armando do Zé Delminda! Lembra-se?!

---Claro, seu pai foi sapateiro? E depois foi ser meirinho? Tinha o seu tio Wantuil...

---Isso mesmo...

---Pois é Armando! Eu sou o Tazinho que criou para si um mundo mentiroso. Tão mentiroso que chegava a acreditar em suas próprias mentiras. Sou o Tazinho que nunca teve um pai e que criou para si um pai rico. O Tazinho que tinha uma mãe prostituta que não o ensinou a amar! Uma mãe que trocou o seu filho por um bandido. Uma mãe que sumiu e nunca mais apareceu deixando o filho perdido em uma grande cidade, em plena adolescência, no meio de bandidos. Fui preso inocente. Apanhei sem saber o porquê! Eu sou o Tazinho cheio de idéias vãs que nunca deu um sorriso sincero para si e nem para ninguém. Estou aqui, hoje, em Candeias, realizando um sonho de quase cinquenta anos, quando eu prometia voltar desfilando de carro à vista de vocês. E veja quem voltou: estou quase cego pelo diabetes, com os passos trôpegos, com os pulmões dilacerados pelo cigarro e com o coração partido. Eu sou o Baltazar infeliz cujo casamento durou apenas dois anos e dezesseis dias. Eu sou um pobre coitado cujos dias estão contados e cujo único sonho que ainda alimentava era voltar à sua terra a fim de reviver um pouco de felicidade. Mas, sinto agora estar ainda mais infeliz do que antes. Ainda bem que encontrei você.

Á vista daquele drama, ofereci-lhe hospedagem em minha casa, propus lhe procurar os amigos ainda vivos, todavia, ele se recusou. Pediu notícias do Odilon Trindade, pai do Junei, com quem era mais ligado e do Flávio Ribeiro que o apelidou de Tazinho Mentiroso. A notícia de suas mortes o deixou desconsolado.

Alguém me esperava e eu tive que ir embora. Despedimo-nos, diante de um abraço frio, no qual existiu apenas dois sentimentos: um de pena e o outro de dor.

Armando Melo de Castro

Candeias MG Casos e Acasos

Um comentário:

Franz disse...

Ler os seus "causos" sempre trazem uma satisfação de ter vivido aquelas situações, ainda que não diretamente. Já havia esquecido daquela canção - Barbaridade - que ouvi tantas vezes e sempre associada a momentos hilários. O Flávio com seu violão que sempre ia na minha casa cantar junto com meu pai e, mais tarde, foi meu professor de inglês com tanta eficiência que não tive dificuldade em concursos dos quais participei.