Uma das mais recentes secretárias do lar
que passaram pela casa de minha mãe deixou-nos boas lembranças. Foi uma curta
temporada. Acredito que não durou três meses. Entretanto, foi o suficiente para
que o seu nome ficasse bem guardado entre nós. Se não fosse o seu pedido de
dispensa, jamais teria sido mandada embora. Chamava-se Marlene.
Pessoa extremamente
humilde, natural da cidade de Camacho, sendo o seu marido lavrador, tendo,
recentemente, adquirido um pequeno sítio nas imediações que formam um
quadrilátero no qual se juntam os municípios de Itapecerica, Candeias, Formiga
e Camacho.
Marlene era magra,
alta, mulata, voz silenciosa, sorriso acanhado, contando, mais ou menos, com
uns cinquenta anos de idade, deixou o seu marido na roça e veio para a cidade
com os quatro filhos, na faixa etária de vinte anos, em busca de melhores
condições de vida. Cada um com um objetivo, contudo, não obtendo nenhum
resultado desejado, tendo em vista o despreparo de cada um para o mercado de
trabalho urbano. Com isso, a moça e os três rapazes só foram encontrar ocupação
na zona rural, junto às lavouras de café existentes em grande número, aqui, no
município.
Analisada a situação,
resolveram voltar para as suas origens, onde se diziam trabalhar menos e viver
melhor chegando à conclusão de que a vida na cidade é, para o matuto, uma mera
ilusão. Lembravam da vaquinha que dava leite para todos em troca de quase nada.
O porquinho no chiqueiro prometendo fartura com a sua morte.
O galo cantando de
madrugada, anunciando um novo dia. A galinha fornecendo ovos em troca da sua
liberdade. O gato trabalhando dia e noite, livrando a casa dos ratos. O
cachorro latindo alegre, anunciando, sempre, alguma novidade. A água correndo
dia e noite sem nenhum custo. O canteiro de hortaliças, à beira do rego,
proporcionando verduras frescas dava de tudo. O caldo do franguinho caipira.
E o dia de matar o
porco!? Aquilo é que era esperança boa! A bananeira em que bananas se perdiam.
Abóboras para dar e vender. Milho verde assado, cozido, transformado em
bolinho, mingau, pamonha, bolo e outras guloseimas. O café catado, sem nenhum
custo, socado, torrado e moído, além de ser muito mais gostoso.
O feijãozinho novo,
sem veneno e conservado na garrafa de coca. Um caldeirão cheio, misturado com
pele de porco, fervilhando o dia todo no fogão de lenha, nem compara com o
feijão cascudo e misturado o novo com o velho na mesma embalagem e todo
envenenado.
Aqui, na cidade, a
situação estava indo de mal a pior, estava ficando cada vez mais preta. Era um
mundo diferente! E quanto mais a coisa ficava preta, mais saudade dava do canto
do galo, do berro da vaca, do grunhir do porco, do miado do gato, do cacarejar
das galinhas, enfim, saudade que mata daquela barulhada, da bicharada e do
cantar das aves. Saudade do cheiro do caldeirão de feijão destampado quando
dava fome.
Sob todos os
aspectos, Marlene não era a empregada ideal para a minha mãe, entretanto, a sua
pureza de alma, o seu carinho, a sua humildade, a sua religiosidade, a
sinceridade com que falava as coisas e, finalmente, o seu desejo de fazer um
trabalho bem feito tudo isso a teria feito ficar por aqui, até hoje, se não
fosse de sua livre e espontânea vontade em deixar o emprego e ter voltado para
o seu meio.
Às vezes, eu lhe
dizia: viver é difícil, Marlene! E ela, humildemente, me respondia com o seu
sorriso acanhado:
---Difícil é, mais
cum Deus, nóis chega lá, Sô Armando!
O marido, que ficara
na roça, não estava tendo tempo para fazer a sua comida. Consequentemente, não
tendo tempo para cozinhar, cozinhava mal. Cozinhando mal, ele errava a mão no
sal e a pressão subia, e atrás da pressão alta, vinha o medo, a cisma de ficar
sozinho, a saudade da mulher, dos filhos, da comida da patroa e de outras
coisas mais indisponíveis.
De manhã, Marlene
chegava para o trabalho como quem teria passado noite no rio de espinho que a
levaria ao mar de rosas. Cumprimentava com o seu sorriso acanhado e dizia:
----Que o dia de hoje
seja santo pra todos nós!
Contudo, dava para
ver a tristeza escondida em seus olhos segurando uma bica de lágrimas.
E já querendo saber o
que fazer para o almoço, recebia instruções da minha mãe:
---Marlene, faça uma
farofa de Jiló?
---Farofa de Jiló?
Como é que faz, Dona Luca?
---Cozinha o jiló,
joga ovos e mexe a farinha...
---E a senhora tem
coragem de comer isso?
---A vida toda eu
comi.
---Jiló com ovo é
veneno.
---O que é isso, Marlene!
Se fosse assim, eu já teria morrido.
---Nossa Senhora! Meu
Deus!
Outro dia, minha mãe
mandou-a fazer couve rasgada com angu:
---Couve rasgada com
angu? Num pode ser picada?
---Por que não
rasgada?
---Rasgada é veneno,
ela não derrete no estame!
---O que é isso,
Marlene, eu como desde menina! – Dizia minha mãe!
---Nossa Senhora! Meu
Deus!
Certo dia, eu ganhei
umas mangas. Cheguei, e após descascar uma delas, lhe ofereci:
---Chupa manga,
Marlene!---Não, Sô Armando, brigada. O dia que eu chupo manga é só manga, num
ponho outra coisa na boca.
---Por que, Marlene?
---Manga vira veneno
se misturá ela cum quarqué outra coisa.
---O que é isso,
Marlene, aqui nós comemos e nunca fez mal.
--- Leite, banana,
laranja e manga, lá in casa nóis não mistura cum nada. Isso misturado vira
veneno.
Eu vou fazer uma
batida e você vai ver. Peguei um copo de leite, duas bananas, uma laranja e uma
manga. Coloquei tudo no liquidificador. Enchi um copo e tomei. Ofereci-lhe para
experimentar e ela assustada e com os olhos arregalados, disse:
--Nossa Senhora! Meu
Deus!
Deixei passar um
pouco, tomei em um copinho de pinga e lhe disse: Agora, vou rebater a vitamina!
---Pelo amor de Deus,
Sô Armando, num fais isso, não! Esse lambiscão mata mais que Arapabaca!
---ARAPABACA?! Nossa
Senhora! Meu Deus! O QUE SERÁ
ARAPABACA!?
Armando Melo de
Castro
Candeias MG Casos e
Acasos
Arapabaca: Planta loganiácea, também
chamada de lombrigueiro.
Um comentário:
Mais um conto divertido pra gente curtir. Apesar de você ter colocado a foto da arapabaca no início, fui verificar no google o significado da palavra. Resultado: As folhas frescas se utilizam para afugentar baratas.
- A planta toda em especial a raiz é empregada como vermífugo.
* - Esta planta é tóxica, portanto o uso deve ser muito bem administrado.
É também conhecida como Lombrigueira.
Claro que você já sabia disso, só coloquei aqui para outros visitantes que tenham curiosidade.
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