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domingo, 4 de dezembro de 2011

O SOBACO RAPADO

                                       Atríz Taís Araújo ---- Foto para ilustrar o texto.
Eu me sinto estarrecido com a violência do homem contra a mulher. Não existe, a meu ver, um ato de covardia mais humilhante. A força do homem não lhe foi concedida por Deus para atos dessa natureza e sim para defender a mulher que, na constituição da família, entra com a parte da sensibilidade tão necessária ao ser humano na sua formação. --------- Portanto, entendo que a força do homem é para proteger a mulher. ------- É verdade que existem mulheres exaltadas e agressivas que não reconhecem a inferioridade da sua força física e avançam nos homens principiando um atrito. Mas esse não é o caso da personagem da nossa história e nem justificaria hum homem levantar a mão contra uma mulher.

Eu tenho bem guardado, nas gavetas da minha memória, um fato triste que presenciei, quando criança, na residência de um casal Lourdinha e Tiãozinho, ---- Eu frequentava a sua casa que tinha um grande quintal onde eu brincava com o seu filho Jesus, mais ou menos da minha idade. Por mais que eu viva, jamais me esquecerei do drama que assisti ali naquela residência e que ficou marcado como um ferro candente no meu cérebro para o resto de minha vida.


Lourdinha, uma mulher de traços lindos, morena escura, canelas finas, corpo mediano, lindo e sedutor, capaz de atender os mais exigentes anseios masculinos, porém, faltava-lhe trato. ---- Um banho de loja e alguns cuidados, com certeza, lhe faria sósia da famosa Taís Araújo, atriz da Rede Globo de Televisão. ----- Se ao nascer lhe tivesse sido dado um endereço diferente para aportar-se neste mundo, o destino de Lourdinha poderia ter sido muito diferente.

No entanto o torrão natal que lhe foi concedido foi nos fundos de uma fazenda, sendo depois sido transferida para um canto da cidade de Candeias.  Como filha de pessoas humildes sem nenhuma perspectiva de vida. Nascera num meio pobre, o pai lavrador e a mãe doméstica. Contudo, faltou-lhe um meio favorável e sendo o homem um produto do meio, podemos reconhecer que Lourdinha foi favorecida pela natureza nas a sorte nunca lhe teve presente.

A pobreza eleva o ser humano que sabe viver com dignidade diante das dificuldades. Mas a vida sempre apresenta uma promessa de sonhos que todos esperam no seu amanhã. Mas o destino de Lourdinha não lhe prometia nada se não lhe bastassem os problemas que a vida lhe teria oferecido oriundos do berço. ---- O único sonho de Lourdinha realizado em toda a sua vida, foi ter participado das coroações da Mãe Maria no mês de Maio. Ela conseguiu ganhando de presente, já usadas, as asas e veste de anjo de uma amiga que já teria passado da idade para tal.

Aos 17 anos durante uma Festa do Rosário, se envolveu em namoro com um cidadão fora dos bons princípios morais, sem ânimo para o trabalho e o pior: cheio de tendências negativas. Era dado à bebida alcoólica e nos excessos se transformava totalmente de comportamento e personalidade. --- É de todo sabido que o álcool não sendo usado com moderação, faz efeitos diversificados e pode até chegar ao agravamento levando o ser humano a caminhos tortuosos, caminhos contrários aos bons costumes impostos pela sociedade.

Lourdinha conheceu Sebastião em uma Festa do Rosário. Dias depois com a pose de bom mocinho aproximou-se dos pais da moça para pedir autorização para o namoro. Como contava com dezesseis anos e ele já rapaz feito, com uma profissão, (Era um pedreiro de meia colher) o namoro foi autorizado tendo em vista os pais julgarem-na ter os dotes necessários pra o casamento, pois, sabia cozinhar, lavar e cozer. -------- Logo depois, se casaram com a aprovação da família que via para a filha uma reserva de futuro,

Sebastião era pedreiro do tipo meia colher. Era conhecido por Tiãozinho, mas, não tinha nada de “inho”. Era um mulatão forte, alto, cabelo bem aparado, rosto largo, dentuço, nariz tala larga e uma boca de dimensão respeitável que esguichava uma voz pastosa, principalmente, quando estava bêbado. Tipo encrenqueiro. Não se dava bem, nem mesmo, com os seus pais. Brigava por coisas ínfimas como, por exemplo, se alguém lhe tomasse o seu pedaço de frango preferido já era motivo para um falatório danado.
Chamava o pai de bobo e a mãe de ignorante, em um tempo em que os filhos beijavam as mãos dos pais. Era grosseiro e estúpido enquanto a mulher era uma figura delicada e amável.

Quase sempre, entrava em conflitos nos botequins quando exagerava nos goles e, ao chegar a casa, tinha a mão solta sobre a família, principalmente, na pobre mulher que vivia com o rosto sempre mostrando as marcas da violência do marido. Os pais, comumente, em conformidade com a história bíblica dos “Setenta vezes sete” (Mateus 18/22) não se envolviam e o pior é que não existia lei que punisse isso. Aquela velha história de que em “briga de marido e mulher não se mete a colher” era coisa efetiva. Para certas mulheres, a sua própria casa poderia ser vista como um protótipo do inferno.

O irmão caçula de Lourdinha iria casar-se na cidade de Campo Belo e a família foi toda mobilizada para a cerimônia. Tiãozinho teria descartado a sua presença, mesmo porque não teria como comprar roupas e nem arcar com um presente. Permitiu que a mulher viajasse desde que não lhe coubesse nenhuma despesa o que lhe foi bancada pelo seu irmão que tinha uma posição financeira boa.

Três dias foi o tempo de ausência de Lourdinha enquanto esteve hospedada com seus familiares na cidade de Campo Belo. Naquele afã da festa, as mulheres se arrumaram com esmero. Lourdinha foi levada a mudar o seu visual, pinçando as sobrancelhas, depilando as axilas, buço, etc. Isso, com certeza, teria mexido, talvez, com a única gota de vaidade que lhe restava.

O filho mais velho do casal não teria ido. Permanecera com o pai. Eu e ele éramos amigos e sempre nos juntávamos para brincar de bolinha de gude e rodar pião no quintal de sua casa que ficava nas proximidades da venda do Antônio do Orcilino, hoje mercearia do Rogério, na Rua Coronel João Afonso, com Rua José Furtado.

Lembro-me como se fosse hoje. Eu estava presente, quando chegou Lourdinha, toda feliz, com um visual mais cuidado, ainda dentro do vestido da festa, presente de sua mãe. O cabelo teria ganhado um banho de óleo e o rosto retocado. Trazia no colo a filha caçula e um embrulho com alguns doces, bombons, pedaços de bolos, ou seja, um pouco da festa para agradar o marido e o filho.

Ela não sabia o que lhe esperava:
Logo depois, ainda naquele calor da chegada, quando Lourdinha dava a mim e ao seu filho as delícias da festa, Tiãozinho vem chegando. Não teria ido trabalhar e já estava embriagado. Quando bateu os olhos empapuçados sobre a mulher e a vê com um novo visual começou com os ataques verbais que logo passariam aos ataques físicos:
Tomou-lhe das mãos o embrulho dos doces da festa e o atirou longe. E aos gritos dizia:

--- Vagabunda! Que negócio é esse de subaco rapado. E esses ôio pelado? Onde qui ocê tirô isso? Até a boca tá rapada. Que mais que ocê rapô? O que ocê andô fazeno nesse inferno de casamento? Deve tá tudo rapado sua “puta”, sem vergonha. Ocê tá mais é pareceno uma vaca do Zé Bolinha. (Zé Bolina era o dono da zona do meretrício). Muié, igual ocê, pricisa é morre! Sua ordinária. Trem ruim. Ocê juntô com a cachorrada da sua famía pra vortá desse jeito igual uma vagabunda de zona. Eu vô te mostrá sua safada, ispera aí.

Pegou a pobre mulher às tapas e lhe tomou pela nuca arrastando-lhe até a uma caixa d’água próxima à porta da cozinha e lhe mergulhou a cabeça causando-lhe um estado de desespero tão grande difícil até mesmo de descrever. Lourdinha estava ali, às portas da morte. Daí o canalha soltou a pobre mulher que se foi ao chão, cujo vestido novo se misturou com a lama da beira da caixa.

O rosto refletia a presença da morte. Eu e seu filho, Jésus, (chorando) com os olhos arregalados, assustados, impotentes, intimamente desesperados, assistimos àquele quadro de terror, quando aquele homem que mais parecia um animal irracional tomou-se da mulher e a depositou numa cama saindo em seguida para a rua.

 Diante disso, eu e o seu filho saímos desesperados até a venda do Antônio do Orcilino e pedimos socorro o que fez logo com que a casa se enchesse de gente.

 A partir desse dia, algo muito sério aconteceu com Lourdinha. Talvez, uma forte lesão cerebral. Ela nunca mais foi a mesma. Ficava o tempo todo olhando em uma só direção. Não ria, não chorava, tornou-se uma criatura vegetativa. Não dava notícia de nada e não falava coisa com coisa. Os filhos que outrora andavam limpos e saudáveis já não mostravam esse quadro. Tiãozinho vivia bêbado. Saía cedo e voltava à noite. Não fosse a família de Lourdinha, esta e os seus filhos teriam morrido de fome.

Após algum tempo, mudaram-se para a cidade de Formiga e eu, nunca mais, tive notícia dessa família. Até que um dia, muitos anos depois, no Bar do Vicentinho Vilela, alguém se aproximou de mim e perguntou:

---Disseram-me que você é o Armando?
---Sim, pois não...
---Eu sou o Jésus da Lourdinha. Talvez, você não se lembre de mais de mim. Moro em Belo Horizonte e sou motorista de táxi.
---Claro que me lembro de Jésus! Como iria me esquecer de você, meu amigo!

Após um abraço emocionante, perguntei:

---E sua mãe? Como está?
---Minha mãe morreu muito nova, logo após nossa mudança daqui. Ela nunca mais se entendeu como gente!

Naquele momento, caíram duas lágrimas que se encontravam guardadas nos fundos dos meus olhos, há muitos anos! Não tive coragem de perguntar pelo seu pai e, felizmente, ele não me disse nada a respeito dele.

Eu gostaria tanto de não ter esta história para contar! Ela me transporta ao inferno das mulheres violentadas por demônios que pensam que são homens.
É triste! É muito triste!...

Armando Melo de Castro
Candeiasmg.Casos e Acasos
Candeias -MG

Um comentário:

Giuliano de Souza disse...

Bom mesmo seria se esse conto fosse somente passado...entretanto, é o registro triste do contemporâneo e sem mostras de extinção futura...