Total de visualizações de página

domingo, 11 de dezembro de 2011

O MÉDICO E O PALHAÇO

Foto apenas para ilustrar o texto

Eu tinha os meus dez anos de idade e estava sempre acompanhando o meu avô João Delminda. Ora na cidade, nas visitas aos amigos, e, em outras vezes, eu o acompanhava até às escolas onde era professor. Ele foi professor durante muitos anos em escolas municipais, nas comunidades dos Cassianos e Caixeiros.

Entre os seus netos, eu sempre pude contar com uma dose de carinho muito especial quando ele me questionava sobre coisas fundamentais na vida de um homem. Seus alunos não se limitavam aos meninos da roça. Muitos da cidade estudavam com ele e o acompanhavam, diariamente, na caminhada de ida e volta da cidade até à comunidade rural onde, naturalmente, estava lecionando. Estão, entre alguns de seus alunos, o João Cassiano Filho e o seu irmão, Cassiano; Zé Vermelho e seus irmãos, dentre muitos outros que no momento me falha a memória.

Nesse tempo, apenas nos Vieiras e nos Pereiras existiam prédios próprios para as escolas rurais. Nas demais comunidades, o dono da fazenda, em que era estabelecida a escola, fornecia um cômodo que era improvisado. Naquela época, os professores, em sua maioria, eram homens e autodidatas. Além do meu avô, tinham outros como: Zé Cristiano (Filho do Padre Américo), Tote da Vitória, Josino Mestre e outros.
Eu era, portanto, um companheiro fiel. Lembro-me, certa vez, quando eu o acompanhei até ao Bairro da Lage a fim de visitar um amigo natural da cidade Ribeirão Preto/SP e que, após suas andanças mundo afora, aportou em Lavras de onde veio escrever um capítulo da sua vida aqui em Candeias.

Ambrolino saiu de sua terra, Ribeirão Preto, quando tinha vinte anos de idade e nunca mais voltou por lá. Teria sido criado num orfanato e não conhecia nenhum de seus parentes. Talvez, magoado com a sua origem, resolveu percorrer o mundo e de lá saiu acompanhando um circo de cavalinho.

Começou trabalhando como auxiliar de palco, pois, naqueles tempos, os circos tinham um palco onde eram encenadas diversas peças teatrais, tanto comédias como dramas. 

Daí, Ambrolino chegou a fazer uma experiência no trapézio quando uma queda lhe fez manco de uma perna vindo, consequentemente, a encerrar a sua carreira de artista circense como palhaço. O palhaço Chupeta. Dizia sempre que escolheu este nome porque a sua vida teria sido uma chupeta em que ele sugava e nunca saía nada. Foi um menino sem infância, depois, um jovem sem namorada porque vivia de déu em déu e nunca teria se casado. Teve um caso com uma colega de circo do qual vieram dois filhos. Infelizmente, a mulher o abandonou, sem mais e sem menos, tornando-se, assim, pai e mãe de dois garotos o que o levou a deixar o circo de lado e se aportar na cidade de Lavras, por ocasião de sua passagem por lá.
Em Lavras, trabalhou de guarda noturno onde arrumou uma companheira que muito lhe ajudou na criação dos filhos. Sendo pobre, não tinha como forma-los e a saída foi orientá-los a integrar o Oitavo Batalhão da Polícia Militar em Lavras. Com o tempo ficou sem a sua companheira que faleceu. Posteriormente, seu destino foi vir morar com um dos seus filhos que prestava serviço em Candeias, como policial.
Ambrolino era religioso, caridoso e tomou amizade com o meu avô através da Sociedade São Vicente de Paula.

Fiquei sabendo que ele teria sido palhaço em um dia, quando  conversava com o meu avô. Ele dizia:

---É, João! A vida de palhaço não é só brincadeira, não! Quantas vezes eu ri estando com vontade de chorar, rapaz. A mãe dos meus filhos me deixou em um dia em que ia cantar no circo a dupla sertaneja Zé Fortuna e Pitangueira (na época era uma das duplas mais famosas do Brasil). Nesse dia, disseram que eu estava mais engraçado do que os outros dias, mas na verdade, eu estava, o tempo todo, era com muita vontade de chorar.

Certa vez, a turma da escola levou em cena um espetáculo no cinema. Tudo que era atração da cidade foi apresentada. Lembro-me que se apresentaram o seresteiro Bigode, um barbeiro que tocava e cantava muito bem. Meu pai com o seu bandolim. Vicente do Augusto com o solo maravilhoso do seu violão e muitas outras atrações. Atrás, nos camarins, estava aquele senhor idoso, meio careca, baixo e de olhar tristonho. Observava toda a movimentação dos artistas amadores que se preparavam para entrar em cena. Uns para cantar, outros para tocar e outros para representar.

Eu, que fazia parte desse evento, conhecia aquele velho quieto em um canto. Quando alguém se aproximando dele, disse-lhe: Sr. Ambrolino, acho que já pode começar a se preparar. O senhor vai ser o último número.

E o velho, abrindo uma pequena maleta, tirou os seus preparativos de palhaço. Uma bola de tênis de mesa vermelha (o nariz), uma cabeleira amarelada, um batom vermelho, etc. e um material branco. A partir daí, começou a se transformar em um palhaço sob a curiosidade dos presentes.
É chegada a sua vez. O apresentador era um jovem por nome de Milton que deu uma ênfase ao apresentar o número:

---E, agora, senhoras e senhores! Uma grande surpresa. Vamos apresentar um artista circense que já percorreu grande parte do Brasil. Com vocês, o palhaço Chupeta, aqui presente para a nossa alegria:

Surge, por detrás da cortina verde do cinema, aquela figura transformada. Parecia que o seu sorriso ia de encontro com as orelhas. Após saudar a platéia com aquele charme de palhaço, agradeceu a oportunidade que a sociedade de Candeias estava lhe dando para subir ao palco mais uma vez em sua vida, após tantos anos sem ver uma platéia. E com a voz um pouco engasgada, anunciou o seu número que seria apresentado:

---Meus amigos de Candeias, eu vou agora tentar arrancar da minha mente preguiçosa a história de um palhaço, de autoria de Henrique Hine, em uma adaptação de Mendes de oliveira: O Tédio

Venho, doutor, fazer-lhe uma consulta!
A doença que me maltrata a mocidade e o espírito vem de uma chaga que nunca cicatriza.
Muito embora, comum a tanta gente, tanto me torna pensativo e doente que já não sei o que é paz nem alegria.
Sendo o doutor, o mais sábio clínico do mundo, sois também um filósofo notável do peito humano. Conhecedor profundo, curareis este mal inabalável que me destrói o organismo, fibra por fibra, que me enevoa e engrossa o cérebro.
Eu tenho um coração que já não vibra.
Suporto uma cabeça que não pensa.
Essa doença mortal, um mau presságio,
que me envenena, que me escurece os dias é como os beijos dado a dinheiro, numa noite de orgias.

---- O amigo tem razão. Padece, realmente!
Contudo, a infermidade, o tédio que o devora, é um produto fatal do século de agora.
Uma emoção vibrante, um abalo violento, pode curá-lo.
Creio que apenas em um momento. O tédio é uma sombria, uma fatal loucura. É a treva interior, a grande noite escura. Onde se esquece tudo: a sorte, a vida amada, o nosso próprio ser e só se lembra do nada. Diga-me: alguma vez amou? Nunca, em seu peito, vibraram as paixões ou o temporal desfeito como as vagas de um mar que se agita e encapela ao soturno rumor do vento e da tempestade?

--- Nunca, doutor, nunca!

---Pois, meu caro, procure a agitação constante, um prazer esquisito, um gozo triunfante! Visite a Grécia, o Oriente, a Terra Santa... Os lugares onde tudo hoje se evoca e decanta, as glórias de uma idade imorredoura que amesquinha e deslumbra a geração moderna.

---- Em muitas festas, doutor, passei a mocidade. Percorri viajando o mundo e a humanidade, como Judas errante! E entre as mulheres todas cujos lábios beijei em transas e bodas, em mulher nenhuma eu vi sobre a terra tamanha que para mim não fosse uma visão estranha. Como parti, voltei. Sem achar alívio para este mal que assim me trás cativo.

--- Então, frequente o circo, amigo! A figura alegre do famoso palhaço que a esta cidade inteira palmas e aclamações, constantemente, arranca! Talvez, ele lhe restitua a gargalhada franca!

---Vejo, doutor, que o meu caso é perdido. O truão de que falas, o palhaço querido que anda no circo, assim tão aplaudido, tem um riso de morte, um riso mascarado, que encobre a dor sem fim
do tédio e do cansaço.
Sou eu doutor, sou eu este Palhaço!

Alguns dias depois desta sua ultima apresentação, Ambrolino foi levado às pressas para o hospital, São Vicente, de Campo Belo. De lá para a cidade de Lavras onde veio a falecer por não resistir as consequências de uma parada cardíaca.

Onde quer que esteja, Sr. Ambrolino, receba o meu abraço e, com certeza, estará batendo um papinho aí com o meu avô.

Armando Melo de Castro
Candeias casos e acasos
CANDEIAS – MINAS GERAIS

Nenhum comentário: