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quinta-feira, 12 de junho de 2008

UM INFELIZ NATAL




Apesar de ter sido um menino pobre, eu tive uma infância muito feliz. Com relação ao Papai Noel, eu posso dizer que os natais da época em que eu acreditava na existência do bom velhinho foram os mais felizes da minha vida. Mesmo pertencendo a uma família proletária e numerosa, meus pais sempre souberam remediar as coisas. No verdor dos anos, tanto eu quanto os meus irmãos,tivemos muito carinho e o natal nunca foi uma festa indiferente para nós. Vivemos aquela doce ilusão de colocar os sapatos atrás da porta e, no outro dia, pela manhã, estarmos muito felizes com os presentes recebidos. Meu pai confeccionava os brinquedos. A cada ano, era um caminhãozinho diferente. Certa vez, ele construiu até uma bicicleta de madeira. Fazia isso escondido, na chácara do meu avô. O caminhãozinho sempre estava cheio com os presentes dos meus irmãos menores. Um saquinho de bala e, às vezes, um pacote de bolacha "Maria" com o nome de cada um. Em outro momento, teve até uma barra de chocolate para ser repartida. As meninas eram presenteadas com pequenos bonecos de papelão que eram fabricados, naquela época, por uma fabriqueta na cidade de Formiga e vendidos, às vésperas de natal, por camelôs a preços bem baratinhos. Não me lembro de ceia de natal. Cear na noite de natal foi um hábito que minha família veio a adquirir muitos anos depois. Sei que, no dia de natal, éramos levados até a Igreja Matriz para vermos o presépio e darmos as boas vindas ao Menino Jesus. E rezávamos, também, agradecendo ao Papai Noel pelos presentes recebidos.

O tempo se incumbiu de roubar esta alegria do meu coração. Não pelo fato da descoberta da inexistência de Papai Noel. Quanto a esta questão, eu apenas fiquei triste no dia em que soube que ele foi uma inofensiva e gostosa mentira na minha vida. O motivo que me levou a sentir o natal distante do meu coração, aconteceu quando eu presenciei um fato que está guardado nos fundos dos meus olhos pelo resto da minha vida. De lá para cá, vi que o natal nada mais é do que uma simples medida das diferenças humanas. Naturalmente, trata-se muito mais de uma convenção comercial. Uma festa que nem sempre o homenageado está presente.

Eu morava em São Paulo e contava com os meus vinte e cinco anos de idade, quando fui convidado por uma família amiga a passar o natal com eles. Uma pequena família portuguesa, formada por apenas a mãe e um filho. Dona Encarnação e o Sr. Antonio com quem eu trabalhava, pela manhã, como datilógrafo. Ele era um corretor de imóveis cujo escritório estava locado junto a sua residência. Esse foi o primeiro natal em que eu passei longe da minha família. O fato de morar fora e distante, me permitia escolher uma das datas de fim de ano para passar em casa. E, nesse ano, resolvi passar o dia de ano novo em Candeias junto aos meus familiares.

À mesa, a ceia, com certeza, causaria muita inveja aos discípulos de Jesus Cristo. Imaginei que haveria, por ali, outros convidados devido ao tamanho da mesa e à fartura exposta. Entretanto, não foi essa a realidade. Somente eu havia sido convidado. Sem dúvida, haveria, naquela mesa, comida para vinte pessoas. Subentendia-se que a velha portuguesa havia trabalhado horas e mais horas para organizar aquela ceia.

Começamos a comer e a velha não parava nem sequer por um minuto. Nem em pé ou assentada. Enquanto eu dava uma garfada nas iguarias, ela colocava alguma coisa no meu prato e sempre dizendo: “Sô Armando, coma isso; coma aquilo; beba isso; beba aquilo e, de quando em vez, ainda dizia: Coma “NOZES PORTUGUÊSAS”. Então, eu não suportava a vontade de rir e me divertia com os micos dos portugueses.

Dessa maneira, eu me encontrava ali, meio perdido, naquele ambiente diferente do meu meio, com a cabeça cheia de vinho português e a barriga cheia de peru, outras carnes, castanhas, nozes e sei lá mais o quê! Um monte de coisas que eu nunca tinha visto na minha vida e mais aquela leréia nos meus ouvidos: Coma, beba, beba, coma e eu me enchia só com a
insistência dos portugueses.

O português parecia um glutão e não era nada engraçado ver uma boca comer, falar e beber ao mesmo tempo. A velha disse que havia outros convidados, mas que, por motivos alheios às suas vontades, não apareceram. Duvidei dessa aleatoriedade e imaginei que a ausência desses convidados poderia ser justificada pelo estilo em recepcionar um convidado. Eu já estava enfarado diante daquele arsenal de comida e da esganação daqueles dois.

No prédio, o movimento cessava. Era facilmente ouvido pelos vizinhos, moradores na respectiva rua, o barulho de quem limpava a sujeira e jogava o resto no tambor de lixo, estacionado à porta do prédio.

Às três horas da manhã, eu estava empanturrado e já não aguentava mais nem olhar para a mesa que ainda se encontrava, absolutamente, cheia, como se ninguém a tivesse tocado. Despedi-me dos anfitriões, agradecendo o carinho e a consideração, e desci pela escada. Na portaria do prédio, dei de cara com um quadro vivo: uma mulher remexia, tal qual uma cadela de rua, no tambor de lixo e apanhava os restos dos banquetes e dava aos seus dois filhos, assentados à beira da calçada, o alimento lixoso que comiam educadamente. A mãe ainda dizia: “Olha que pedaço bonito!”

Da janela do terceiro andar, meninos riam daquele gesto infeliz. Parei, olhei e me emocionei quando aquela mãe, em um gesto desconfiado, olhou para mim e me perguntou: “Tem portança eu mexê aqui, moço” E eu, praticamente sem voz para respondê-la, fiz apenas um pequeno gesto com a cabeça dizendo que não.

Fiquei aturdido diante daquele cenário cujo proscênio, sob o clarão da ribalta, mostrava uma ceia de natal cuja miséria humana era perspicaz. A desigualdade do poder em se fartar numa noite em que os sinos bimbalhavam nas torres das igrejas, da cidade toda engalanada comemorando o nascimento do Menino Jesus, ali, num canto da cidade de São Paulo, eu sentia o meu coração partido, espremido e o sumo me saindo pelos olhos. Naquele momento, eu perguntei aos céus: por que aquela infelicidade no meu coração e tanta alegria nos olhos daquela mãe e de seus filhos miseráveis que eram observados com desdém por moradores do prédio? E ao tentar responder a mim mesmo, não pude obter resposta. A vida é, realmente, cheia de mistérios insondáveis!

Hoje, quando me vem à memória que Jesus nasceu em uma manjedoura, entre os ruminantes, posso entender que o natal é uma festa paradoxal, principalmente, se houver carne de boi ou de porco porque o primeiro recebeu Cristo e Lhe acolheu em sua manjedoura, assistiu ao Seu nascimento e Lhe deu aconchego com o seu bafo. E o outro, por ser impuro e indigno, em uma festa oferecida a Jesus Cristo. Portanto, eu imagino que o natal deveria ser uma festa de pobre para pobre e que os mais aquinhoados acabaram, insensivelmente, alterando o seu real sentido. A prova maior disso é recebermos de um judeu ou de um ateu os votos de um “Feliz Natal”.

Eu queria falar de um natal diferente, contudo, foi esse que me veio à mente:
 UM INFELIZ NATAL



Armando Melo de castro
Candeias MG Casos e Acasos 
































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