Apesar de ter sido um menino
pobre, eu tive uma infância muito feliz. Com relação ao Papai Noel, eu posso
dizer que os natais da época em que eu acreditava na existência do bom velhinho
foram os mais felizes da minha vida. Mesmo pertencendo a uma família
proletária e numerosa, meus pais sempre souberam remediar as coisas. No verdor
dos anos, tanto eu quanto os meus irmãos,tivemos muito carinho e o natal nunca foi
uma festa indiferente para nós. Vivemos aquela doce ilusão de colocar os
sapatos atrás da porta e, no outro dia, pela manhã, estarmos muito felizes com
os presentes recebidos. Meu pai confeccionava os brinquedos. A cada ano, era um
caminhãozinho diferente. Certa vez, ele construiu até uma bicicleta de madeira.
Fazia isso escondido, na chácara do meu avô. O caminhãozinho sempre estava
cheio com os presentes dos meus irmãos menores. Um saquinho de bala e, às
vezes, um pacote de bolacha "Maria" com o nome de cada um. Em outro
momento, teve até uma barra de chocolate para ser repartida. As meninas eram
presenteadas com pequenos bonecos de papelão que eram fabricados, naquela
época, por uma fabriqueta na cidade de Formiga e vendidos, às vésperas de
natal, por camelôs a preços bem baratinhos. Não me lembro de ceia de natal.
Cear na noite de natal foi um hábito que minha família veio a adquirir muitos
anos depois. Sei que, no dia de natal, éramos levados até a Igreja Matriz para
vermos o presépio e darmos as boas vindas ao Menino Jesus. E rezávamos, também,
agradecendo ao Papai Noel pelos presentes recebidos.
O tempo se incumbiu de roubar
esta alegria do meu coração. Não pelo fato da descoberta da inexistência de
Papai Noel. Quanto a esta questão, eu apenas fiquei triste no dia em que soube
que ele foi uma inofensiva e gostosa mentira na minha vida. O motivo que me
levou a sentir o natal distante do meu coração, aconteceu quando eu presenciei
um fato que está guardado nos fundos dos meus olhos pelo resto da minha vida.
De lá para cá, vi que o natal nada mais é do que uma simples medida das
diferenças humanas. Naturalmente, trata-se muito mais de uma convenção
comercial. Uma festa que nem sempre o homenageado está presente.
Eu morava em São Paulo e
contava com os meus vinte e cinco anos de idade, quando fui convidado por uma
família amiga a passar o natal com eles. Uma pequena família portuguesa,
formada por apenas a mãe e um filho. Dona Encarnação e o Sr. Antonio com quem
eu trabalhava, pela manhã, como datilógrafo. Ele era um corretor de imóveis
cujo escritório estava locado junto a sua residência. Esse foi o primeiro natal
em que eu passei longe da minha família. O fato de morar fora e distante, me
permitia escolher uma das datas de fim de ano para passar em casa. E, nesse
ano, resolvi passar o dia de ano novo em Candeias junto aos meus familiares.
À mesa, a ceia, com certeza,
causaria muita inveja aos discípulos de Jesus Cristo. Imaginei que haveria, por
ali, outros convidados devido ao tamanho da mesa e à fartura exposta.
Entretanto, não foi essa a realidade. Somente eu havia sido convidado. Sem
dúvida, haveria, naquela mesa, comida para vinte pessoas. Subentendia-se que a
velha portuguesa havia trabalhado horas e mais horas para organizar aquela
ceia.
Começamos a comer e a velha
não parava nem sequer por um minuto. Nem em pé ou assentada. Enquanto eu dava
uma garfada nas iguarias, ela colocava alguma coisa no meu prato e sempre
dizendo: “Sô Armando, coma isso; coma aquilo; beba isso; beba aquilo e, de
quando em vez, ainda dizia: Coma “NOZES PORTUGUÊSAS”. Então, eu não suportava a
vontade de rir e me divertia com os micos dos portugueses.
Dessa maneira, eu me
encontrava ali, meio perdido, naquele ambiente diferente do meu meio, com a
cabeça cheia de vinho português e a barriga cheia de peru, outras carnes,
castanhas, nozes e sei lá mais o quê! Um monte de coisas que eu nunca tinha
visto na minha vida e mais aquela leréia nos meus ouvidos: Coma, beba, beba,
coma e eu me enchia só com a
insistência dos portugueses.
O português parecia um glutão
e não era nada engraçado ver uma boca comer, falar e beber ao mesmo tempo. A
velha disse que havia outros convidados, mas que, por motivos alheios às suas
vontades, não apareceram. Duvidei dessa aleatoriedade e imaginei que a ausência
desses convidados poderia ser justificada pelo estilo em recepcionar um
convidado. Eu já estava enfarado diante daquele arsenal de comida e da
esganação daqueles dois.
No prédio, o movimento
cessava. Era facilmente ouvido pelos vizinhos, moradores na respectiva rua, o
barulho de quem limpava a sujeira e jogava o resto no tambor de lixo,
estacionado à porta do prédio.
Às três horas da manhã, eu
estava empanturrado e já não aguentava mais nem olhar para a mesa que ainda se
encontrava, absolutamente, cheia, como se ninguém a tivesse tocado. Despedi-me
dos anfitriões, agradecendo o carinho e a consideração, e desci pela escada. Na
portaria do prédio, dei de cara com um quadro vivo: uma mulher remexia, tal
qual uma cadela de rua, no tambor de lixo e apanhava os restos dos banquetes e
dava aos seus dois filhos, assentados à beira da calçada, o alimento lixoso que
comiam educadamente. A mãe ainda dizia: “Olha que pedaço bonito!”
Da janela do terceiro andar,
meninos riam daquele gesto infeliz. Parei, olhei e me emocionei quando aquela
mãe, em um gesto desconfiado, olhou para mim e me perguntou: “Tem portança eu
mexê aqui, moço” E eu, praticamente sem voz para respondê-la, fiz apenas um
pequeno gesto com a cabeça dizendo que não.
Fiquei aturdido diante
daquele cenário cujo proscênio, sob o clarão da ribalta, mostrava uma ceia de
natal cuja miséria humana era perspicaz. A desigualdade do poder em se fartar
numa noite em que os sinos bimbalhavam nas torres das igrejas, da cidade toda
engalanada comemorando o nascimento do Menino Jesus, ali, num canto da cidade
de São Paulo, eu sentia o meu coração partido, espremido e o sumo me saindo
pelos olhos. Naquele momento, eu perguntei aos céus: por que aquela
infelicidade no meu coração e tanta alegria nos olhos daquela mãe e de seus
filhos miseráveis que eram observados com desdém por moradores do prédio? E ao
tentar responder a mim mesmo, não pude obter resposta. A vida é, realmente,
cheia de mistérios insondáveis!
Hoje, quando me vem à memória
que Jesus nasceu em uma manjedoura, entre os ruminantes, posso entender que o
natal é uma festa paradoxal, principalmente, se houver carne de boi ou de porco
porque o primeiro recebeu Cristo e Lhe acolheu em sua manjedoura, assistiu ao
Seu nascimento e Lhe deu aconchego com o seu bafo. E o outro, por ser impuro e
indigno, em uma festa oferecida a Jesus Cristo. Portanto, eu imagino que o
natal deveria ser uma festa de pobre para pobre e que os mais aquinhoados
acabaram, insensivelmente, alterando o seu real sentido. A prova maior disso é
recebermos de um judeu ou de um ateu os votos de um “Feliz Natal”.
Eu queria falar de um natal
diferente, contudo, foi esse que me veio à mente:
UM INFELIZ NATAL
Armando Melo de castro
Candeias MG Casos e Acasos
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