Recebo de
meu amigo Nico do Zinho Borges, candeense de boa gema e linhagem tradicional, a
lembrança do nome de um companheiro meu, que já se encontra nos céus das rosas
entre nuvens sem tempestade: Sebastião, mais conhecido como Tião Quirino.
Tião foi um bom rapaz. Estatura
mediana, dentuço, rosto rústico, pouca barba, tipo imberbe; tinha o hábito de
gesticular usando a cabeça para confirmar as suas próprias palavras. Não era
dado ao trabalho convencional; sobrevivia com o que lhe rendia pequenos ganhos
avulsos, como pintor letrista de faixas, cartazes, cartonagens, etc.
Parece-me que jamais teve um
emprego. Se me não engano, teria trabalhado, quando ainda garotão,
unicamente na fábrica de fogos do Belmiro Costa, então situada à Rua do
Cemitério, numa grande casa com diversas portas azuis edificadas ali onde se
encontra a propriedade do Sr. Alexandro de Paiva.
Tião era muito inteligente a
exemplo de toda a família Quirino. Certa vez fez um boneco de Judas para a
festa do sábado de aleluia. (sábado santo)
Numa época de São João, fez,
também, um grande balão que teria gasto mais de uma hora para enchê-lo de
fumaça, em meio a uma grande algazarra de meninos dos quais entre eles, eu
estava lá, numa aglomeração junto ao chafariz do Sansão.
Eu acho que nunca vi alguém mais
feliz do que pude ver Tião Quirino olhando aquele lindo balão de papel de seda,
policromado, subindo aos céus todo iluminado e deixando a terra como se
estivesse indo para perto de Deus.
Tião Quirino nasceu, viveu e
morreu em Candeias... Mas com certeza nasceu, viveu e morreu no lugar errado.
Candeias lhe deu o berço, mas não lhe deu condições de sobreviver com
dignidade. Seus ideais trafegavam em caminhos pouco transitados. Sua vida foi
um barco numa tempestade; sabia que iria naufragar, mas não sabia em que ponto
da viagem.
Revirando os fundos das gavetas
de minha memória, consigo estar junto de Sebastião Quirino falando-me de seus
planos e de seus ideais. Planos e ideais que nunca, nem por perto, foram
atingidos. Às vezes era visto como um visionário... Um utopista. Mas, a bem da
verdade, parecia tratar-se de um espírito intelectual encarnado no corpo de um
peão bem rude.
A televisão chegou ao Brasil no
início da década de cinquenta e só chegou a Candeias, ainda bastante precária,
com poucos aparelhos e uma imagem muito ruim já quase no fim da década de
sessenta. Até então as novelas existiam através do rádio e das revistas. As
fotonovelas faziam o grande sucesso com as mulheres. Era, portanto, a - era -
das revistas. Trocavam-se umas por outras no sentindo de variarem de histórias.
Sebastião Quirino escreveu uma
fotonovela. Improvisou uma revista, desenhou quadro por quadro e mandou para
uma editora e não obteve nenhuma resposta. Eu li a historia e gostei muito. Foi
quando pela primeira vez pude observar o quanto era Inteligente. Posteriormente
escreveu um livro... Um romance, e o enviou para uma editora que pelo menos
teve a dignidade de devolvê-lo e apresentar as desculpas por não interessar.
Sebastião era autodidata, quase
não frequentou escolas, mas tinha notícias de tudo que se passava ao derredor
do país e do mundo. Fazia os mais diversos comentários sobre conhecimentos
gerais. Sebastião amava através da paixão alucinada; sonhava, mas vivia perdido
entre as nuvens dos seus sonhos. A pobreza, às vezes, ludibria à felicidade. A
verdade dificilmente entra pelos olhos dos cegos. E Sebastião apesar de
inteligente era como um cego para atingir os seus objetivos.
Imaginava poder vencer na vida
sem sair de Candeias. Deus, contudo, lhe negara a coragem de buscar fora o seu
espaço. Eu sempre lhe falava: amigo, você parece querer ser como um rio: fazer
o curso sem sair do leito!... Aqui não terá futuro!...
Infelizmente ele começou a beber.
Suas doses foram sendo aumentadas e se tornou num alcoólatra inveterado; já era
visto quase sempre embriagado. Certa feita, numa das costumeiras excursões na
velha usina Bonaccorsi, em meio a tanta gente, pude ver o meu amigo totalmente
desnorteado e servindo de chacota para os presentes. Ele bradava alto e em bom
som:
“Eu amo a Marilda... Eu amo a
Marilda Paixão”...
Sim ele amava a Marilda Paixão,
mas não tinha um futuro para lhe oferecer e escondia as suas mágoas para
afogá-las no álcool.
Após um recesso alcoólico,
resolveu escrever uma peça de teatro. Reuniu alguns amigos entre eles eu estava
como contra regra e sonoplasta. Foi um sucesso. O cinema ficou lotado após um
grande trabalho de toda uma equipe para ver a casa cheia. Tratava-se de um
espetáculo beneficente, em favor das obras da Igreja Matriz.
Após o grande evento, Sebastião
totalmente envolvido na sua condição de vitorioso, adentrou-se no Bar do Lulu e
começou a beber. Tão logo se embriagou viera-lhe a metamorfose negativa, lhe
fazendo expor a explosão que guardava na caixa do seu silêncio.
Logo depois desceu à rua do
sobrado, atravessando a Praça da Fraternidade foi ater-se na residência do Dr.
Pery Malheiros Simões, médico, então diretor do Ginásio de Candeias, que
residia onde mora hoje a Sra. Wilba.
Eram duas horas da manhã. O
Sebastião totalmente embriagado despertou o morador e disse-lhe em voz alta:
“Dr. Pery, eu amo loucamente à sua filha!...” Uma garota à época de pouco mais
de dezesseis anos de idade, bonita e rica...
Naturalmente foi tratado como um
proletário infeliz e bêbado desencantado da vida.
Alguns anos depois eu o encontrei
ebrifestivo totalmente aturdido dando um sorriso sem dentes, mostrando um corpo
doente que se não suportava mais a disciplina da vontade.
Levei-o à sua casa. E nesta
oportunidade eu pude rever aquele local onde quantas vezes eu tentei
reanima-lo, buscando convence-lo a começar uma vida nova fora de Candeias, e a
resposta foi sempre surda: Não. Não Armando!... Não paga a pena, dizia...
Eu o conhecia bem de perto,
portanto, sugeri a mim mesmo que ali não estava um gênio e sim um superdotado
perdido no seu pequeno mundo cruel, sem um “deus” para lhe ajudar, porque ele
não queria ajuda.
Senti naquele momento uma
funda e comovida piedade. Foi a última vez que o vi.
Armando
Melo de Castro -
candeiasmg.blogspot.com
candeiasmg.blogspot.com
2 comentários:
Você poderia escrever também sobre o Pedro Quirino, igualmente inteligente como o irmão!
Olá Armando, familiares e Amigos do Sebastião Quirino,
Belo texto.
Lembro bem do Sebastião, do Judas que ele fez e de um Ovo de Avestruz ou Ema - não sei bem.
Ele carregava este Ovo consigo e com tanto cuidado que eu até achava que acabaria chocando o Ovo rsss.
Eu o via pelas ruas com o Ovo e me preocupava....
Um dia, perto do Bar do Sebastião (se não me engano), vi uma enorme marca de gema e clara no chão e a dedução foi na pinta!
Lá se foi o Ovo!
Também admiro e agradeço muito ao seu irmão o Pedro Quirino que era meu companheiro de Férias escolares.... Ele me dava aulas particulares, pois eu tomava segunda época em matemática e em Inglês todo ano (quando não era bomba).
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