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sábado, 14 de setembro de 2013

O RÁDIO DE DONA LIRA.

Foto para ilustração do texto 

O sonho de dona Lira era ter um rádio. Queria ter um rádio para escutar as músicas de Cascatinha e Inhana, Duo Guarujá, Tonico e Tinoco bem como de outros cantores de quem era fã incondicional. Quando ela ouvia a música Luar do Sertão, baixava sobre ela uma grande tristeza por se lembrar dos seus tempos de menina na comunidade rural onde foi criada, quando a vida era, então, muito feliz ao contrário de agora que está cheia de problemas de todas as ordens e sem esperança de ver alguma melhora. Com quatro filhas solteiras, um marido irresponsável pela bebida e sem uma profissão definida. Entretanto, mesmo assim, diante de tanto descrédito, dona Lira ainda alimentava um fio de esperança de um dia possuir um rádio, afinal, a esperança, como dizem, é a última que morre.

Em toda a rua, existia, no máximo, três rádios. Quem tinha um aparelho desses o ligava até ao último furo, ou seja, no ponto mais alto. E fazia-se isso por dois motivos: Primeiro, para que os vizinhos aproveitassem o som das músicas e das notícias. Naquele tempo, existia o chamado "Reporter Esso" da Rádio Nacional do Rio de Janeiro que ao tocar a sua chamada musical todo mundo ficava de orelha em pé. Era sempre uma notícia ruim. Era como, nos dias de hoje, em Candeias, quando é anunciada a morte de alguém pelo alto falante da Igreja Matriz. Se houvesse um rádio ligado, logo se aproximavam algumas pessoas. O outro motivo era por se tratar de um certo status possuir um rádio. Um rádio era um aparelho caro e não era acessível a um proletário comum. Aquele que o tinha gostava de demostrar o seu objeto. Seria como os smartphones e tablets da atualidade. Os toca-discos eram raríssimos. Os discos eram de grafite e facilmente quebráveis. Possuíam 78 rotações e apenas uma música de cada lado. Entre o rol de cantores famosos daquele tempo estavam: Anísio Silva, Silvinho, Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves, Angela Maria, Cascatinha e Inhana, Tonico e Tinoco e muitos outros que ainda são ouvidos até hoje, apesar de muitos já terem ido para o andar de cima há tempos.

Meu pai ainda demorou uns três anos, desde esta época, até conseguir comprar um rádio, tipo "rabo-quente" que era um aparelho antigo o qual conservo até hoje como uma bela relíquia, além de alguns discos e uma vitrola movido à corda.

Dona Lira era uma mulata miúda de cabelo liso. Tinha quatro filhas as quais ela, desde bem cedo, já colocava na lida doméstica. Aparentemente, ela era uma forte mistura de negro, índio e branco. Carregava, na cabeça, um feixe de lenha maior que ela e buscava-os nos matos para vender aos seus fregueses em um tempo em que ainda não havia os fogões a gás. Ela e suas filhas eram muito trabalhadeiras. Lavavam roupa para fora, faziam faxina pesada e, ainda, buscavam lenha e capim-membeca para a fabriqueta de colchão do Candola Vilela.

O marido não tinha um serviço certo. Era, como diziam, um ambulante, pois, a cada dia, trabalhava para um patrão diferente. Ele sempre fazia ponto na venda do sr. Zé Lara que existia no local em que se encontra, atualmente, o bar do Vicentinho Vilela na Rua Professor Portugal. Dali saía, às vezes, até carregado pela embriaguez.

Dona Lira tinha uma vida muito difícil, coitada! Nos dias de chuva, o seu trabalho não rendia e ela passava a falta de muitas coisas e, por várias vezes, precisava de contar com a bondade e ajuda dos vizinhos que lhe emprestavam sempre ou uma colher de sal, ou um pouco de gordura ou ainda um pouco de arroz que, a bem da verdade, nunca voltavam. Todavia, por se tratar de pessoa agradável e muito prestativa, ninguém ligava para isso. Naquela época, muitas pessoas comiam o que ganhavam no dia e seu marido, que era alcoólatra, se estivesse sob o efeito do álcool, costumava dizer assim: "Eu sou como uma lombriga: se eu sair da merda, eu tô morto". E quando alguém lhe perguntava o que ele fazia, dizia sem titubear: "Eu cago para jantar".

Todavia, mesmo diante desse cenário precário, dona Lira dizia: "Se Deus quiser e Nossa Mãe do Céu ajudar, eu vou ter um rádio algum dia". E ela, que não era muito rezadeira, acabou fazendo uma promessa para São Judas Tadeu, o santo das causas impossíveis, que se acaso conseguisse um rádio, iria de joelho da porta da igreja até ao altar mor da antiga Igreja Matriz de Candeias.

Do outro lado da rua, residia um cidadão chamado Domingos que era casado com dona Jovina. Domingos era enfermeiro especializado em leprologia. Era funcionário público federal e veio do Rio de Janeiro em companhia de alguns médicos especialistas para uma frente de trabalho que foi feita, em época remota, em Candeias, visando combater um surto desta terrível doença.

Domingos era um homem bom. Lidava com os doentes sem qualquer preconceito, pois não tinha medo da doença. Era um homem prestativo e estava sempre pronto a ajudar uma pessoa. Durante o tempo em que residiu em Candeias, ganhou diversos afilhados, haja vista que todo mundo gostava dele e ele gostava muito das crianças. Como era nosso vizinho, meus pais o chamou para apadrinhar a minha irmã, Maria Amélia. O povo gostava de ouvi-lo falar naquele sotaque carioca cujo "x" estava sempre na ponta da língua.

Um dia, veio a triste notícia de que Domingos voltaria para o Rio de Janeiro e, dessa maneira, resolveu fazer um inventário de parte dos seus utensílios domésticos deixando, como lembrança, um objeto para cada vizinho mais chegado. E para dona Lira, ele deixara um pequeno rádio do tipo rabo-quente, da marca RCA Victor, arredondado e preto.

Dona Lira, ao receber o presente, ficou transpassada e começou a chorar. Ela que teria chorado pela partida de Domingos já não estaria, agora, lamentando tanto a ida do vizinho amigo, marcada para o dia seguinte. Então, seu rádio falava e cantava o dia todo. Rezava, dava hora certa  e ela dizia: tão certa quanto o relógio que batia na sala de dona Marica, uma outra vizinha próxima. De longe, a gente ouvia no último furo do volume, a fala do Totó, um músico locutor da Rádio Clube de Campo Belo que já existia naquele tempo que não havia, ainda, rádios FM (Frequencia Modulada). Assim, boa parte da vizinhança ficou morrendo de inveja de dona Lira. Afinal, ganhar um rádio de mão beijada!?

Desta maneira, era chegada a hora de pagar a promessa. Dona Joana do Galdino parecia ser a cobradora do santo e não perdia tempo em cobrar de dona Lira a promessa feita. Logo, todo mundo que soube da promessa queria vê-la pagar o mais depressa possível. Contudo, dona Lira não parecia estar com muita disposição para pagar a promessa e se esquivava dizendo que precisava fazer um vestido novo para a ocasião, pois não tinha uma roupa bonita para cumprir a promessa. E o rádio, todos os dias, amanhecia e anoitecia no último furo, cantava, chorava, rezava, dava notícia boa, notícia ruim, e assim foi até que, após uns quinze dias, ele pifou e ficou totalmente mudo para a tristeza de dona Lira e para o silêncio dos vizinhos. Parece que teve vizinho que até achou bom o rádio de dona Lira pifar porque, infelizmente, os invejosos não querem que os outros tenham aquilo que eles mesmos não possuem. 

Levado ao Sebastião Salviano, o radio-técnico da cidade, lhe foi dada a triste notícia que o rádio havia recebido uma sobrecarga elétrica e, com isso, teria queimado algumas válvulas, peças caras e que todo dono de rádio temia acontecer.

Enquanto dona Lira e alguns vizinhos diziam que o verdadeiro motivo do problema havia sido o não cumprimento da promessa por ele, o seu marido, bêbado feito um gambá, dizia para todo mundo escutar:

--- Eu falei que esse santo não prestava. Eu nunca vi falar nele. Dá e toma. É um Tadeu que deu e num deu. Santo prá mim é São José o resto é resto. E dispois tem mais: já qui ia pidi pra quê num pidiu prá Jesus Cristo, num é ele o chefe dos santos??!!! Ora só! Cumigo é no pé do pau!

Armando Melo de Castro
Candeias casos e acasos mg

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