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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A VENDEDORA DE FARINHA.

Foto apenas para ilustração do texto.
No passado, em Candeias, era um vira-e-mexe de gente chamando nas portas das casas a ponto de aborrecer ao extremo seus moradores. Como não havia campainha, o chamado era através de palmas, batendo na porta ou um grito “Oh, de casa!”. E, como naquele tempo, não existiam essas aposentadorias de hoje, eram pedidores de esmola e vendedores um atrás do outro. Vendedores de tudo quando há,  e pedidores de esmola que aceitavam quaisquer coisas cavando o seu pão de cada dia. ----- Esses, quando não aguentavam mais fazer a via-sacra da esmola eram levados para a Vila Vicentina.

Os mascates, também, em Candeias, existiam em demasia. Seus alforjes continham diversas miudezas. Esse tipo de vendedor andava, ainda, pelas roças a cata de fregueses que lhes davam cama e comida.

Aos sábados, a zoeira às portas aumentava porque vinham os sitiantes roceiros a vender os frangos conduzidos em manguara, cestas com queijos, sacos com farinha de mandioca ou de milho pilado. Havia doces, polvilho e rapadura. Não faltavam grãos, verduras e outras coisas mais produzidas na roça. ------ A vida do roceiro não era tão fácil como nos dias atuais. Era muita dificuldade, pois, não existia qualquer assistência social e nem vínculo empregatício. As leis do trabalho não eram tão rígidas como agora. O pobre era um verdadeiro escravo do patrão que o entregava para a Vila Vicentina mais tarde, quando este já não aguentava mais o batente pela vida.

E por falar nisso, eu me lembro de duas irmãs que moravam na zona rural de Candeias e vinham aos sábados vender seus produtos na cidade. Lembro-me apenas o nome de uma delas: Dona Chiquinha. Era a irmã mais velha e vendia a farinha de milho mais gostosa do mundo. Era magra, alta, cabelo meio amarelo, um tanto esbranquiçado, com o rosto estragado pelo tempo e com o corpo pouco vigoroso. ---- Estava sempre com o mesmo vestido de finas listras nas cores cinza e azul, como se aquele fosse o especial para vir à cidade. Dona Chiquinha chamava a atenção das pessoas devido ao seu enorme papo. Para quem não sabe, papo é assim chamado vulgarmente ao que se refere, na realidade, à doença denominada bócio, ou seja, o crescimento da tireoide, aumentando o volume do pescoço causado pela falta do sal mineral iodado. É mais comum nas mulheres.

Dona Chiquinha era muito educada. Tinha uma voz rouca entrecortada. Todos já a conhecia e ela nem chegava a perguntar se queria comprar a farinha. O fregues já ia falando quantos litros queria ou se não queria. ---- Se não tivesse dinheiro, ela vendia fiado. Quando se tratava de um novo comprador, ela apenas dizia: “Ninguém nunca reclamou da minha farinha”. Era grande a sua freguesia do produto de milho pilado em monjolo, coisa rara nos dias de hoje. Dona Chiquinha e sua irmã herdaram de seus pais esse jeito de ganhar a vida. Além da farinha, vendiam, também, outras coisas, contudo, o forte no seu negócio era a farinha.

 As duas irmãs andavam com um saco dependurado nas costas. Uma trazia a farinha de mandioca e a outra a farinha de milho. E cada uma andava de um lado da rua, sempre à vista uma da outra para que ambas atendessem à freguesia ao mesmo tempo. Com o dinheiro recebido compravam aquilo que não produziam como sal, açúcar, remédio, tecido, etc. É bom saber que em Candeias ainda existe dessa farinha artesanal com produção limitada em uma comunidade rural.

Em tempo remoto, veio morar em Candeias um casal que instalou residência em uma casa na Rua do Cemitério, atualmente, Rua Expedicionário Jorge. Ele era um pedreiro de boa colher, fazia parte da equipe do construtor licenciado, Luiz do Miroque, procedente da cidade de Itapecerica. Era um cidadão alto, boa pinta, chapéu de palha, bigode do tipo “Cantinfras” e uma boca cheia de dentes claros. Depois do serviço, estava sempre tomando umas pingas na antiga vendinha que existia onde hoje está o barzinho do Wantuil Badaró. Tocava violão e cantava músicas românticas.

Sua mulher se chamava Lucia. Era uma mulher baixinha do tipo arrogante, dessas mulheres que vai à feira e para comprar um tomate passa a mão em todos que estão expostos. Quando comprava leite, faltava pouco querer saber a cor da vaca que o teria produzido. No açougue, tinha que perguntar se a carne era de porco ou de porca. Estava sempre dizendo que a carne de porca é fedorenta e rançosa e a de porco não. Morria de nojo desses produtos da roça. Dizia que tudo isso era fabricado sem conceito de higiene, que essas pessoas não possuíam água dentro de casa e que a falta de higiene dessa gente era grande, pois tomavam banho apenas aos sábados. Dizia ainda que, constantemente, após coçarem as partes, pegavam nos produtos sem levarem as mãos.

Era muito religiosa. Aliás, ser muito religioso pode ser o mal de um grande pecador. Era sempre vista na igreja debulhando o seu missal. Vivia varrendo o terreiro da rua e, quando um cachorro escolhia o seu terreiro para fazer as necessidades, o coitado do animal era escaramuçado a pedradas cujas pedras já ficavam reservadas no canto da janela para esse fim.

Diziam os mais próximos que se tratava de uma pessoa extremamente nojenta, o que nos dias de hoje seria uma pessoa com “Mania de Limpeza”.

Certo dia, Dona Chiquinha bate à porta de Lúcia pela primeira vez para lhe oferecer farinha:

---A sinhora qué comprá farinha?

---Não! Eu não como coisas da roça...

---Ah, intão tá bão... Inté mais...

Assim que Dona Chiquinha vai saindo, Lucia a interroga:

----Isso que a senhora tem no pescoço é papo?

----É sim...

----E me conta aqui. Isso não tem cura, não?

---Eu num sei não sinhora.

---É horrível isso, né!? Como que a sinhora dá conta disso?

---Deus me ajuda...

---Isso dói?

---Incomoda...

---E os fregueses da sinhora compra farinha da sinhora com essa doença?

E a mansa, a pouca prosa, a fala baixo, a educada vendedora de farinha foi saindo calada. Quando estava no meio da rua, resolveu voltar, bateu à porta de Lúcia e tão logo esta apareceu, quase que aos gritos, com a sua voz sufocada, Dona Chiquinha disse:

---Vai pá puta que te pariu sua porca fedorenta!

E Lúcia desesperada e muito irritada respondeu:

---Posso ser qualquer bicho, menos porca fedorenta!


Eu sempre tive cuidado com as pessoas mansas porque no fundo elas são mais bravas.


Armando Melo de Castro
Candeias MG Casos e Acasos.











Um comentário:

Celle disse...

Mais uma viagem no tempo!
Como a vida nas cidades do interior de Minas se assemelhavam! Descrevendo seus causos nos lembramos de fatos semelhantes ou parecidos ocorridos conosco ou nas nossas cidades.Sua facilidade de descrever com detalhes o ocorrido anos atrás, mesmo que imaginados, se aproximam muito da realidade mais ou menos comum em todos os lugares, por isso mesmo gosto de passar por aqui para matar minhas saudades.
Obrigada por nos permitir relembrar de situações esquecidas lá no passado! Na minha cidade havia um escritor que dizia " O que passou não passou, ficou!" (Jovelino Lanza)