Foto para ilustração do texto.
Eu fui um
menino bobo, calado e obedecia, inconscientemente, à lei da natureza que
determina que Deus fez o homem com uma boca e dois ouvidos para que ouvisse
mais e falasse menos. Pelas ruas, eu era sempre visto acompanhando ora o meu
pai, ora o meu avô e, às vezes, a vizinha Dona Ester. Portanto, inspirada neste
meu comportamento, minha mãe chamava-me de rabo do meu pai, tendo em vista
estar eu sempre atrás dele.
Certa vez, fui com
Dona Ester no Bairro da Gruta à procura de uma cartomante. Eu não sabia, até
então, o que seria uma cartomante. Fui pego de surpresa, quando Dona Ester, de
supetão, convidou-me a acompanhá-la até a casa de uma mulher lá pelos lados da fazenda
do Juca do Nico.
Ao sair, eu a vi
preparando algo que seria entregue à cartomante: um pouco de feijão, de arroz e
farinha, uma latinha de massa de tomate da marca Peixe, concorrente, à época,
da Cica e um pacote de macarrão da marca Pieroni. Este era um macarrão antigo,
grosso e danado de azedo, porém, muito consumido haja vista o seu baixo custo.
Era fabricado na cidade de Formiga, contudo, tão logo começou a surgir produto
similar, de qualidade, nas mesmas condições de preço, o macarrão Pieroni foi
para o beleléu.
Preparado o bornal,
saímos. Eu ia todo contente. Afinal, iria conhecer uma cartomante e com isso
estava fervendo de curiosidade. Dei um toque em Dona Ester sobre o que seria
uma cartomante e ela me disse que se tratava de uma pessoa que adivinhava as
coisas.
Chegamos a uma
daquelas ruelas, lá dos fundos do Bairro da Gruta, onde existiam poucas casas e
já nos encontrávamos submetidos aos olhares curiosos dos poucos moradores.
Afinal, pertencíamos a uma outra tribo que usava tomar banho e andar calçado.
Acho que se aquela gente visse um carro iria, naturalmente, pensar que se
tratava de um bicho de outro mundo. Nessas alturas, quem falava era só Dona
Ester. Eu, como um tatu de galocha, somente observava, em silêncio, o ambiente
desconhecido e como os moradores dali eu só falava e respondia com os olhos.
Interessante que,
antigamente, as pessoas viviam apenas no seu pedaço, no seu canto. Eu me lembro
que a primeira vez que fui ao Bairro do Alto do Cruzeiro já era menino grande.
E foi, já nesse tempo, que conheci o Bairro da Gruta que não ficava tão longe
assim da Rua Coronel João Afonso, onde eu morava.
De repente, me vi à porta de uma casa e Dona Ester gritando: Maria! Ôh, Maria! Quando a porta se abriu e fomos convidados a entrar.
No
recinto da sala, os móveis se resumiam em um banco tosco de madeira e um porta
chapéu velho. Assim, eu já recebi o metro para medir a pobreza do ambiente.
Rumo à cozinha, observei o telhado todo preto pela fuligem do fogão à lenha o
que dava um aspecto bem sinistro. Um caramanchão de maracujá, próximo à porta
da cozinha, atropelava a passagem. Ali, se acomodava um cão de aspecto doente
que nem se mexeu com a chegada das visitas. Tomamos assento em um banco da
cozinha que servia, também, como suporte de um caixote onde os utensílios
domésticos eram depositados. Na parede, uma lamparina, naturalmente,
identificando que, por ali, não havia luz elétrica. Próxima da porta, uma
pequena barrica d'água. No canto do fogão, um feixe de lenha e havia, ainda,
uma pequena prateleira e um pilão.
A imagem da
cartomante foi para mim uma grande decepção. Miúda e magra, trajando um vestido
velho de riscado, cabelo crespo, meio gaforina, rosto e nariz vermelho de
alcoólica, sobrancelhas estilo tala larga que lhe realçavam os olhos de peixe
morto. Um quadro estarrecedor para quem ali chegara imaginando encontrar Atena,
a deusa da sabedoria.
Mas, afinal, o que
seria uma cartomante? O que ela iria adivinhar para Dona Ester? Eu estava
curioso e, cá com os meus botões, pensara em lhe pedir para adivinhar algo para
mim. Num resumo, Dona Ester havia me falado que a mulher adivinhava as coisas.
Assim, eu imaginei encontrar algo totalmente diferente.
Dona Ester disse-lhe
então o que teria ido fazer ali, porque os seus dias não estavam dos melhores.
Entregou-lhe “os trens de comer”, o que lhe fez tão feliz como se tivesse ganho
um prêmio do Baú do Sílvio Santos, e logo convidando Dona Ester para adentrar o
quarto, a velha questionou:
----"E o minino,
Ister, comé qui fais?".
---- "O
Armando?! Ele pode intrá tadinho... Ele não fala nada não, ele é um menino
bobinho".
Achei bom. A minha
curiosidade nem me fez levar a mal o fato de ter sido chamado de bobo. E depois
eu era bobo mesmo. Eu queria ver aquele ritual de adivinhação. Logo, no quarto,
formou-se o cenário: A cartomante assentada na cabeceira da cama, com as pernas
abertas e Dona Ester que não dava conta de abrir as pernas, deitada pelos pés e
eu agachado num canto, completando aquele quadro de mística barata. A
adivinhadora toma de um baralho, o embaralha e, por fim, o dá para partir,
quando começa:
---- "Ocê tem
andado meia chatiada com uma pessoa. Se ainda num tá, vai tá. Ela morre de
inveja docê. Isso só purque ocê tem um home que cuida docê. E ela num tem
ninguém purela".
----"Ocê vai
iscutá no rádio seu uma nutícia triste. E do jeito que ocê é boa, vai te dá até
vontade de chorá quessa nutícia".
----"Ocê é muié
do coração bão! Gosta de dá as coisa pro zoto. E tem dó de quem passa
dificurdade. Num tem fio, mais gosta de minino e tem um minino doido pur causa
docê".
---"Apareceu
aqui uma dama preta, isso num é bão não!! É sinal que uma pessoa preta deseja
mal procê...".
Dona Ester ouvia
atenta e confiante enquanto aquela imundície mental foi me causando uma gastura
danada. Eu, do alto da minha ingenuidade, pude notar o quanto o ser humano é
frágil.
Alguém como Dona Ester que para mim era um foco de sabedoria, de bondade, de exemplo, vê-la submetida àquele plano ridículo daquela pessoa tão desprovida de como se comportar na vida. Uma pessoa que talvez não soubesse o que é a tristeza ou a alegria; a coragem ou o medo; o equilíbrio ou a desarmonia; o brilho ou o baço; o relacionamento ou a dificuldade; o amor e o desamor...
Dona Ester estava ali, crente naquelas baboseiras ditas por alguém que nada mais fazia a não ser defender a sua boca carente de álcool ou da comida que lhe poupasse da morte. E fazia isso, com certeza, de uma forma irracional de sobrevivência como irracional é o cão que late e o gato que mia.
Por que aquela mulher tão pobre, vivendo em plena miséria, não usaria os seus dotes de adivinhação para descobrir algo que pudesse, antes de ajudar a alguém, ajudasse a si mesmo?
Eu não conseguia entender e nem acreditar que Dona Ester estivesse confiando naquela mulher a quem visitava de quando em quando. Durante anos, martelei na minha cabeça a ideia do porquê que Dona Ester buscava acreditar nas coisas que aquela mulher lhe falava olhando as cartas de um baralho.
O coração é um cofre
que guarda os sentimentos mais íntimos do seu dono. Aquela mulher fora uma
prostituta tal qual fora Dona Ester, todavia, não teve a mesma sorte. Naturalmente,
agora, recebia não só a ajuda indireta de Dona Ester, como também, recebia um
pouco de atenção como filha de Deus.
Armando Melo de
Castro
Candeias MG Casos e
Acasos
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