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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

NO MEIO DOS POBRES.

                                         
                                                     JARDINEIRA CHEVROLET 1954

 Por volta do ano de 1962, eu fui cobrador de uma jardineira que fazia a linha Candeias / Oliveira. O veículo era da marca Chevrolet, de fabricação estrangeira, do ano de 1954, e já se encontrava ultrapassado e vencido pelo tempo. Teria sido colocado a correr naquela linha em condições precárias, cheio de problemas, mesmo porque, não havia a fiscalização governamental como existe nos dias de hoje. O motorista era o Jésus Teixeira,  irmão da Luzia do vico.
Trazíamos, no seu interior, um cacho de banana verde para esfregar nos buracos do radiador a fim de evitar o vazamento de água. Levávamos, também, uma lata vazia, sendo que era necessário parar, em quase todos os córregos do itinerário, para completar a água do radiador. ------ Essas duas coisas ficavam expostas ao lado do motorista. Não tinha como esconder isso dos passageiros. O veículo possuía apenas um pequeno porta-malas sobre o seu teto. Ali ficava amarrada uma enxada encavada para os atoleiros nos dias de chuva, junto a bagarem dos passageiros.
A jardineira era uma fotografia em preto e branco, da pobreza e do desleixo. Aliás, naquele tempo, a pobreza rondava Candeias em quase todos os sentidos. Suponho que os pobres de hoje tenham uma vida muito mais confortável do que os ricos daquele tempo.

A lotação era de apenas 25 passageiros. Saía do seu ponto às seis horas da manhã, na Avenida 17 de Dezembro, da porta do antigo Bar Rodoviário de propriedade do Sr. Raimundo do Antero, estabelecido numa velha casa que existia onde atualmente há um lote vago nas imediações do Cartório da Marília Viglioni.

Do seu ponto inicial, subia pelo Alto do Cruzeiro e tomava a estrada de chão passando pela fazenda do Sr. João Pinto de Miranda, na comunidade do Retiro, na Cidade de São Francisco de Paula (Naquele tempo era distrito) e, finalmente, Oliveira.

Até São Francisco de Paula eram poucos os passageiros. Dali para frente, a velha jardineira ia lotada e apertada tal qual uma lata de sardinha. Por ser, ainda, um distrito, a população de São Francisco dependia muito da presença em Oliveira. Havia dias que o veículo de 25 passageiros transportava nada menos de 40 pessoas o que causava um tremendo desconforto entre todos os passageiros. ----- Era uma situação difícil: se existissem 100 passageiros, todos queriam viajar assim mesmo. Todos num só momento, com um só pensamento diante de uma aleatoriedade sobre direitos, capacidade de lotação, necessidade de viajar e mais um monte de motivos, principalmente, em dias de chuva.

A volta era o mesmo transtorno. Portanto, a viagem de Candeias a São Francisco de Paula era tranquila e vice e versa. De Candeias a Oliveira quase não apareciam viajantes. Dificilmente, aparecia um.

Juca da Virgínia era um cidadão muito requintado. Descendente de duas famílias íntegras e tradicionais da sociedade candeense: Alves e Alvarenga. Era um homem bem informado e falava ao pé da letra. Naquele tempo, era o único leitor, em Candeias, da Revista: “O Cruzeiro” e do Jornal “O Correio da Manhã”, dois dos mais conceituados veículos de comunicação do Brasil. Juca era, portanto, muito esclarecido, bem falante e bem afeiçoado. Enfim, uma pessoa interessante e extremamente vaidosa.

Certo dia Juca aparece para viajar de Candeias para Oliveira. Estava todo banhado, cheiroso, bem vestido e satisfeito por estar indo fazer um passeio à casa de amigos na cidade vizinha. Ao vê-lo, o motorista já cochichou nos meus ouvidos: “Hoje tem”. 

Notava-se, durante a viagem, o mal-estar do Sr. Juca dada à poeira da estrada penetrando dentro da jardineira e criando um ambiente bastante desagradável. Contudo, Juca não poderia imaginar o que o esperaria  lá em São Francisco de Paula.

Era chegada a hora, naquela cidade, da superlotação. Veio tomar assento, junto ao Juca, em uma poltrona sem divisória, uma senhora gorda, que mal caberia sozinha na poltrona, deixando-o duplamente desconfortável. ------ A situação era muito difícil que eu, apesar de ser, então, bem magro, não tinha como me locomover dentro do carro para cobrar as passagens e para isso era preciso, sempre, parar a jardineira antes da chegada à cidade de Oliveira para acertar com os passageiros. Mesmo porque, o percurso de São Francisco de Paula a Oliveira é de apenas 17quilômetros.

Nesse dia, aconteceu um fato inusitado. A passageira assentada ao lado do Juca, em pleno estado de necessidade, soltou os intestinos causando um tremendo desconforto a todos os passageiros e, principalmente, ao seu colega de poltrona que já vinha horrorizado com a viagem.

A situação daquela senhora foi  triste e difícil até de descrevê-la dado o excesso dos dejetos lançados. Ao vê-la descer do carro, logo na entrada da cidade, os passageiros sentiram um misto de nojo e pena daquela pobre mulher tão humilhada diante daquelas circunstâncias.

Pouco à frente, nas proximidades da fábrica de balas Santa Rita, todos os passageiros desceram, exceto o Sr. Juca que terminaria a sua viagem na Rodoviária que já se encontrava próxima. Descendo da lotação, postou-se com um ar de revolta, com nojo, cheirando as suas vestes, protegendo o nariz com um lenço branco quando trajava um belo terno de casimira azul e fazendo, finalmente, o seu pequeno discurso para o qual não lhe faltava o dom da eloquência:

---Olhem, meus amigos Jésus e Armando: Jamais me verão, de novo, dentro dessa jardineira de vocês! Não existe cruz maior do que viajar dentro de um veículo tão desconfortável, empoeirado e em meio a passageiros sem requintes de higiene. ----- Parece-me que fui premiado nesta viagem desastrosa. Isso para mim é um espírito malfazejo colocando-me como colega de viagem junto a uma senhora sem válvulas intestinais, defecando-se ao meu lado o tempo todo. Estou, simplesmente, horrorizado. Esse cheiro fétido não sairá fácil do meu nariz. Viva eu cem anos, lembrarei sempre dessa viagem. Voltarei para Candeias por outro meio. Talvez a pé, mas, longe de vocês. Desculpem-me a franqueza!

Eu, um garotão ingênuo, não sabia o que significava aquelas palavras tão diferentes, até então estranhas do meu vocabulário. Pedi ajuda ao motorista Jesus. Lembro-me de que quando me foi traduzido “defecar e fétido” eu ri como um bobo alegre. Afinal, eu acabara de aprender um jeito chique de falar “cagar fedendo”.

 Armando Melo de Castro
Candeias MG Casos e Acasos.

Um comentário:

Unknown disse...

Isso faz parte de minha história, quando criança viajei muito para Campo Belo nessa jardineira. Boa lembrança.