O velório, apesar de ainda existir, vem, aos poucos, deixando de ser na residência do morto. Hoje, a exemplo das grandes cidades, existem os locais destinados a esses rituais, onde o finado é velado em um ambiente apropriado em que os veladores possam estar mais confortados para passar uma noite junto ao defunto.
Aqui, em Candeias, era comum o velório ser na própria residência. Quanto mais estimado fosse o falecido, maior dificuldade enfrentava a família para dar acesso aos amigos visitantes.
Atualmente, com o advento das funerárias nas pequenas cidades tendo instalações apropriadas, as coisas estão melhoradas. Inclusive, já se falam em velório virtual, pela internet, quando parentes podem acompanhar a cerimônia à distância, através da instalação de câmeras no local do funeral.
Quando essas inumações eram preparadas nas residências, dava-se um banho no defunto e lhe colocava a melhor roupa, normalmente, que era poupada para esse momento. No homem, comumente, vestia-se um terno com gravata e na mulher costumava-se preparar uma mortalha. Quase toda pessoa tinha uma muda de roupa usada apenas para ir à missa e ser enterrada. Às vezes, acontecia do morto ou a morta ficar meio exprimido dentro da roupa, talvez, por ter engordado ou inchado com a morte. Nesse caso, abriam-se, por detrás, as vestes que serviam de mortalha. Sempre se dava um jeitinho. Não havia flores sobre o defunto. As flores de velório eram apenas duas jarras que ficavam próximas aos castiçais na cabeceira do finado. Muitos enterravam os seus mortos com sapatos e roupas novas e eram comuns as histórias de cadáveres assaltados pelos coveiros. Esses lhes roubavam as roupas, os calçados e a dentadura com dentes de ouro. Isso pode parecer absurdo, contudo, era a pura verdade, principalmente, nas grandes cidades.
Nos tempos em que Candeias não tinha uma funerária, eu auxiliei, por muitas vezes, o Alvino Ferreira, nessas tarefas de preparar defuntos para as quais ele se oferecia. Éramos voluntários da Vila Vicentina. Os caixões eram simples e resumidos em um engradamento coberto com pano roxo e noventa por cento das pessoas eram enterradas no chão. Havia gente que ficava impressionada com a fragilidade do caixão e imaginando o momento em que a terra batesse em cima daquilo! Coisas de pessoas de mente fértil com relação à morte.
Havia grande diferença entre um velório de pobre e um velório de rico. O rico, normalmente, tinha um banheiro dentro de casa, uma sala ampla e se dava um café reforçado para os presentes, sucos, refrigerantes, etc. Na saída do enterro, era a hora de fechar o caixão, os enlutados colocavam óculos escuros para esconder as lágrimas e choravam em silêncio. As providências, obviamente, eram tomadas por familiares.
Já o velório de pobre era diferente. A casa nem sempre cabia todo mundo. Fazia-se uma fogueira no terreiro e providenciava um garrafão de pinga quando a vizinhança se incumbia do tira-gosto. A noite varava e, quase sempre, alguém ficava embriagado. As pessoas ficavam contando piadas e rindo. No local onde estava exposto o morto, cada qual comentava os seus problemas. De hora em hora, era rezado um terço e, na maioria das vezes, comentava-se, entre os participantes, o estado degenerativo do falecido. Alguns chegavam a beirar o caixão e observar se havia algo de errado, se o cheiro do defunto estava normal. Isso porque não existiam os cuidados existentes nos dias atuais. Ali, todo mundo dava palpite e a casa do morto virava uma "casa da sogra". Na hora de fechar o caixão, a gente via de tudo: gente desmaiando, outros não querendo deixar fechá-lo e havia quem aos gritos dizia: ---“Num vai, não, meu pai!” ou “Num vai, não, minha mãe!” --- Meu Deus! O que será de mim com essa fiarada!? O quê qui o sinhor fez cumigo, meu Deus do Céu!? Outros já berravam em cima do caixão: Eu quero morrer, tamém! Exclamações das mais variadas e não só choravam os familiares como, também, os vizinhos e os parentes diante de tamanho drama. Todavia, hoje as coisas estão modificadas para melhor.
Certa vez, trouxeram, das bandas dos Vieiras, um homem para ser enterrado. Veio trazido, em uma padiola, tipo de uma escada rústica. Teria sido emprestada à família do morto, uma casa que ficava no quarteirão da minha residência, na Rua José Furtado. A casa era de roceiros que a usava apenas nas ocasiões de festas. Era uma casa velha com uma pequena sala onde o morto foi depositado. O enterro foi marcado para o dia seguinte, às 8 horas da manhã. Não se fazia enterro à noite e, durante o dia, as providências não foram suficientes para que o sepultamento se desse antes.
A vizinhança se mobilizou para o velório. Dona Ester já deu as suas voltas convocando a confraria. Ela e Maria da Sinhana já se apresentaram como puxadoras do terço. Maria do Ônor buscou flores entre os vizinhos e Alvino Ferreira estava pronto para dar banho e fazer a barba, etc. A confraria do bairro se fazia presente, cada um querendo prestar algum tipo de serviço. Naturalmente, todos tinham débitos com Deus e não queriam perder a oportunidade de fazer um resgate.
Minha família morava ali perto e eu acompanhei o meu pai pela noite inteira, nesse cumprimento do dever com a divindade. Aliás, eu acho que aprendi a beber cachaça foi em velórios. Meu pai sempre me permitia um golinho para tirar a friagem.
Lá pelas tantas, para um cavalo à porta da casa, apeia dele uma mulher magra, cabelos compridos e lisos, mal vestida e feia, com uma lanterna na mão, sem cumprimentar ninguém, iluminou a cara do defunto e já começou com o seu discurso de bêbada:
--- Pois é, seu safado! Cê morreu de repente pra me dexá na mão. Agora, quem vai tratá de mim? Isso era hora docê imbora pus inferno? Pois é, seu cachorro! Eu te dei por mais de dez ano e ocê acabou num me dano nada. Safado, cê só quiria o bem bão. Só quiria cumê a fruta! Na hora de apruveitá de mim ocê apruveitô de todo jeito. Agora tá aí todo gostosão, parece até qui lá vai pruma festa. Seu trem! Trem ruim. Agora, nem Deus vai querê me ajudá!
Nesse momento, entra em cena a dona do defunto, ou seja, a viúva:
---O quê que é isso? Onde já se viu isso? Ocê tá doida? O que ocê tá falano, Cumá Mariquinha? O Joaquim andava co'cê? Eu num acridito, num pode ser, meu Deus! Acho que eu morri e tô no inferno. Num pode! Isso num pode. Ocê andava com ele, Cumá Mariquinha!?
E a outra respondeu:
---Não Cumá Tiana, ele qui andava cumigo. Ele qui vivia inrrabichado ni mim e tem mais: se ocê qué sabe, meus dois minino é fio dele.
Logo, saiu resmungando, montou novamente no cavalo e saiu.
Nesse instante, a viúva olhou para o caixão e disse:
---“Era ela a sua canseira, né, disgraçado! Ah! Se ocê num tivesse murrido! Ocê ia chegá no inferno era vivo, mardito”.
Armando Melo de Castro
Candeias mg casos e acasos
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