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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

UMA MISSA EM LATIM


 Ambiguidade familiar eram as missas no latim. Não havia coisa, também, mais sem sentido. O padre, lá na frente, de costas para os fieis e ninguém entendia nada do que ele falava... Signum, crucis, noster, pater, Angele, Dei, etc.etc.etc. Ai meu Deus! Pra quê isso?! Assim era a minha concentração durante a missa.

Como naquele tempo o povo rezava mais do que nos dias atuais, a igreja ficava sempre lotada e não havia bancos para todo mundo. Então, as naves da igreja ficavam superlotadas. Era costume nos acomodarmos na nave que ficava à direita do altar-mor, bem nas proximidades de um confessionário. 

Parece-me que, naquele tempo, os fieis tinham lugar fixo na igreja... Comumente, se via a mesma pessoa no mesmo lugar e em todas as missas. Lembro-me, como se fosse hoje, o Sebastião Redondo e o seu filho Antônio Redondo, assentados, bem juntinhos e bem gordinhos, ouvindo atentamente o sermão do padre. Havia uma parenta do padre que, se acaso, alguma pessoa tomasse o seu lugar nos bancos, a intrusa era convidada a desocupá-lo de maneira hostil. 

A Joana do Galdino, moradora da Rua Coronel João Afonso, tinha afixada, na sua parte do genuflexório, uma pequena almofada para torná-lo mais confortável. E, se porventura, alguém tomasse o seu assento... Brigava ali, na frente de todo mundo, e depois, tomava a comunhão numa boa... 

Nas rezas, o povo era dispersivo... O padre rezava o seu latim... Os homens rezavam o seu terço... As mulheres cantarolavam... Até que, num determinado momento, tudo se tornava um silêncio total. Era a hora da consagração.

As pessoas se ajoelhavam, ficavam de cabeça baixa, batendo a mão no peito e dizendo algo que ninguém ouvia e nem sabia o que era...


O meu pai, quando me via absorto, cochichava nos meus ouvidos e mandava falar: “Jesus, perdoa-me, por misericórdia”. Eu achava aquilo muito esquisito, afinal, eu não havia feito nenhum pecado... Mas, dizia muitas vezes, em voz alta, sem me preocupar de que estaria chamando a atenção dos presentes.


Eu era ainda bem criança quando, certo dia, bem à minha frente, eu ali sob os olhos vigilantes do meu pai, exato na hora de dar início à cerimônia consagrada... Hora de ajoelhar para receber a santa fluidificação... De ouvir apenas o soar da sineta... Hora de rogar a Deus pelos pecados e, no ápice da concentração, um barulho quebra o silencio: Um pum! Um "punzão"! Solto naquela hora sem que o seu dono pudesse fazer algo para impedi-lo tornando-se totalmente impotente, naquele momento.


Era um senhor magro, claro, meio idoso, terno de brim amarelado, chapéu na mão e bengala. Escorava-se na bengala para se ajoelhar e, nesse exercício, soltou, involuntariamente, o prisioneiro que havia em sua cela intestinal.


Criança munida de todos os sentidos, na forma de “zero-bala”, e sem as malícias adultas que ainda não lhe haviam poluído o cérebro, disse em voz alta: Pai! Alguém deu um peido aqui dentro da igreja e isso é pecado. No que fui repreendido pelo meu pai e orientado através de um olhar repreensivo, a ficar calado.

Fiquei silencioso diante do olhar severo do meu pai. Mas, ao sair da igreja, junto àquela aglomeração, eu disse alto e em som aberto: “Pai, olha ali o homem que deu o peido dentro da igreja”... Pai, ele dá pum e raspa a bengala no chão pensando que a gente é bobo.


Somente hoje eu poderei entender o olhar daquele homem sobre mim: É como dissesse:


“Ai que vontade de matá-lo, desgraçado!”.


Armando Melo de Castro.


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