A festa de Corpus Christi, comemorada no mês de junho em Candeias, ainda desperta em mim de forma memorável, o verdor dos meus anos. Busco as alegrias com as quais convivi, sem saber que com elas viriam muitas dificuldades que a vida nos oferece... Eram outros tempos!
Dizer que a vida era melhor que nos dias atuais seria incoerência com a ordem das coisas. Mas o primor da infância me confunde e, às vezes, fico pensando se sou eu que estou mudado ou o mundo... Se o povo era mais inocente ou mais singelo... Se mais sábio ou ignorante... Se mais honesto ou mais consciente... Enfim, fico indeciso. E diante da indecisão, sinto-me como o “Burro de Buridan”: com sede e com fome, perto de um balde de farelo e outro com água, acabou morrendo indeciso sobre o que fazer primeiro se bebia ou se comia.
O tempo era das vacas magras. Pouca carne e pouco frango; pouco dinheiro, pouco trabalho. A pobreza era mais abundante. O viver era um tanto limitado em todos os sentidos. Poucas mudas de roupas, das quais, uma era designada especialmente para a igreja, cujo uso era exclusivo e restrito. Ir à missa aos domingos pela manhã e a bênção do Santíssimo à noite era um dever dogmático, bem como participar de todos os eventos da igreja; sempre empanados na mesma “roupinha de ver Deus.” E a gente não se envergonhava como hoje muita gente se envergonha de ser pobre. A vida talvez fosse mais difícil, mas a idade nos fazia feliz. E foi numa missa de Corpus Christi que ficou cravado nas paredes da minha memória um fato acontecido dentro da antiga matriz:
A matriz antiga era menor e me parece que havia mais gente do que nos dias atuais. O povo candeense tinha muito compromisso, não tanto com Deus, mas com a igreja ou com o pároco, e, além disso, não existiam outras instituições religiosas estabelecidas em Candeias, como nos dias atuais, era somente a Igreja Católica. O pároco que era candeense, Padre Joaquim de Castro, posteriormente Monsenhor Castro, era um pároco vitalício na paróquia de Candeias, muito respeitado e querido por todos. E diversas gerações foram passadas sobre a sua disciplina como sacerdote rígido. ---- A comunidade católica candeense era ativa, dedicada e comprometida nem tanto com Deus, mas com a religião e com o pároco. Portanto, se pintasse algum pastor protestante, ou de outra razão religiosa, seria muito mal recebido, pela comunidade, sendo enxotado, escaramuçado ou até apedrejado, como aconteceu certa vez. Não fosse a interferência do finado Joaquim Caroca e do Sr. Willian Viglioni, que entrou na defesa, desse também filho de Deus, o resultado poderia ter sido desastroso.
A velha matriz estava sempre lotada durante as três missas dominicais: Ainda, nesse tempo, a missa era celebrada em latim e como ninguém entendia nada de latim, quem não estivesse rezando o terço durante a missa ficava voando mais que as andorinhas da igreja. ---- Aliás, era recomendado o terço na hora da missa para evitar essa dispersão. O Monsenhor Castro, não permitia indisciplina na sua igreja, portanto, separou as mulheres dos homens, distribuindo os bancos em duas partes: na parte da frente ]sentava os homens e por detrás as mulheres. Essa ordem era cumprida nas procissões e nos enterros.
Mas o fato que eu presenciei aconteceu na missa das 10, horário muito disputado pelos fieis: Havia na cidade duas pessoas totalmente diferentes: Erasto de Barros e Jovelino pedreiro.
O Sr. Erasto de Barros, era o porteiro do Grupo Escolar Padre Américo e morador
da Rua Coronel João Afonso, meu vizinho. --- Cidadão simplório e apesar de
pertencer a uma família de porte distinto, parecia não ter seguido, à risca, os
padrões familiares. Não fazia, para a época, um juízo antecipado de suas
palavras... Pensava em voz alta e comumente a gente o via falando sozinho e
gesticulando com as mãos. Às vezes, me parecia uma pessoa desnorteada. Mas
mesmo sendo assim, Erasto de Barros era um homem bom; honesto; respeitado e
muito querido na cidade. Foi meu amigo desde a minha infância, sempre me
agradava com os caquis do seu pomar. seu palavreado chulo, e do seu jeito
ansioso não ofendia, mas o fazia hilariante.
Certa vez, quando eu estava à porta de minha casa ele descia a rua bravo e perguntou para a sua prima Marica da Melada, se ela havia visto o Ademir seu filho. A resposta negativa o deixou com o seguinte comentário: “A hora que eu encontrar o Demi hoje, eu vou fazê ele peidá burraio”
Gostava de uma política partidária e durante uma eleição para prefeito, cujo candidato era o Zé do Anjo, do qual ele era adversário, O William Barbeiro, para vê-lo nervoso disse: “Sô Erasto, o Zé do Anjo vai ganhar a eleição tranquilo”. Ele respondeu imediatamente irritado: “Quem vai ganha é seu rabo e o rabo dele”.
Era tão apavorado que quando viajava, da janela do ônibus, cuja parada ficava à porta do Bar Piloto, não existia rodoviária, se despedia das pessoas dizendo: “Boa viagem, vai com Deus”; quando era ele que estava indo.
O Sr. Erasto não era frequentemente visto na igreja. Se, acaso fosse todos os domingos à missa, deveria, com certeza, diversificar os seus horários. Portanto ele não era sempre visto pelos fiéis de um mesmo horário da solenidade.
Jovelino era um negro muito querido; tocador de trombone da banda musical. Pedreiro de construções rasteiras e morador ali pelas bandas do bairro da Lage. Era gago, muito gago... Sua tartamudez deixava os seus interlocutores ansiosos. Engasgava-se com as próprias palavras até quando pensava. Frequentador assíduo da igreja. Em todas as celebrações, lá estava ele rezando o terço com o seu rosário de biurá. As pessoas evitavam assentar perto do Jovelino dado a sua gagueira quando rezava o terço: “SssannntatatataMamamamamariririria” mânãmamã de DEEEUS“... Papapapai-nonononosso-quequeque-estaes-nooocc.”
Era assim, mas não fazia isso em voz baixa não. Dava aquele estalinho na ponta da língua acompanhado de um chio na garganta que parecia que ia assoviar. Estivesse quem estivesse por perto, ele ignorava que estava sendo incomodante.
Nessa altura dos acontecimentos, igreja cheia, já aguardando o início da missa, chega o Erasto: Olha para um lado, olha para o outro, até que viu um lugarzinho perto do Jovelino. Era um grande achado, um lugar vago naquele momento. –Ajoelha-se, faz o sinal da cruz; uma pequena prece e senta-se, até aí tranquilo, quando se dá início ao seu martírio.
Homem nervoso; impaciente; língua solta... soltíssima, naturalmente deveria ter imaginado que quando a missa começasse o Jovelino mudaria de postura. Muitos por ali já imaginavam o que poderia acontecer.
O celebrante chega ao altar e começa a missa: “Introibo ad Altare Dei” (Entramos no altar de Deus).
E o Jovelino “debulhando” o rosário. Agora sim! A situação teria ficado pior. Com o ruído da celebração Jovelino abriu um pouco mais o seu volume e num dado momento, o Sr. Erasto vendo que a sua missa seria impraticável, levanta-se, dá uma olhada raivosa para o Jovelino e diz: VAI REZAR NO MEIO DO INFERNO! Sai nervoso e antes de chegar à porta exclama:
Puta que pariu!
Meu caro senhor Erasto: Onde quer que esteja receba o meu abraço, a minha admiração pelo pai, pelo marido e pelo amigo que foi aqui entre nós. E, ainda, muito obrigado pelos saborosos caquis do seu pomar, com os quais aprendi a gostar, tanto, dessa fruta.
Armando Melo de Castro
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