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quarta-feira, 31 de março de 2010

DONA NINITA ALVARENGA




Num dos estojos mais delicados da minha memória encontra-se guardado o meu terceiro ano de escola, frequentado no Grupo Escolar Padre Américo, no ano de 1955, em Candeias, quando foi minha professora, a Sra. Ninita Alvarenga.

Naquele tempo, não havia esse tratamento de “tia” dado hoje em dia, pelos alunos às professoras. Chamar uma professora de tia era como um contrassenso, mesmo porque, antes o tratamento de tia a quem não fosse irmã dos pais ou avós, era quase que uma agressão moral. Esse tipo de tratamento, não sendo aos verdadeiros tios, era como se uma referência dada às moças que não se casavam... Aos pederastas com mais de quarenta anos e às donas dos bordéis. Chamar uma moça de tia não era educado. Todavia, esse hábito que começou a surgir com o advento do Jardim da Infância, não tem nada a ver com os tratamentos pessoais existentes na língua portuguesa. Isso, a meu ver, não é elegante para ser usado numa escola. Mas, fazer o quê? Tanta coisa muda para pior!... Já dizia a Dona Salomé... Grande Dona Salomé!... Antiga professora candeense.

Talvez eu fosse o dono da maior timidez entre os alunos da minha turma. Comecei o primeiro ano em 1953. A minha primeira professora, Dona Maria do Carmo Alvarenga, a segunda Srta. Enir Parreira e a terceira foi Dona Ninita Alvarenga.

Eu repeti dois anos no primário envolvidos numa série de problemas. Naquele tempo havia uma prova final, e essa prova final reprovava os alunos por qualquer motivo, não havia essas chances que se tem hoje os alunos; mesmo porque, eram muitas as vagas e as professoras saiam de casa em casa fazendo matriculas. O Grupo Escolar Padre Américo  não tinha alunos suficientes para a sua lotação. Contava pouco tempo a sua inauguração e os alunos não tinham uma idade padrão.

A minha paixão pelas professoras sempre esteve centrada na querida, Dona Ninita Alvarenga, cujo retrato encontra-se perfeito no álbum da minha memória. 

Ela era linda no seu porte completo: Os seus cabelos pretos levemente ondeantes cortados abaixo da nuca, transparecendo a maciez da seda; um olhar manso e de um negrume quente; o nariz fazendo ângulo com o queixo redondo e suave; os lábios místicos cobertos por um batom vermelho e brando, completando o rosto de um anjo sorridente. A cor clara e um corpo ressaltando uma cintura fina com uns quadris um pouco desenvolvidos, dando mostra do feitio de um violão. Uma correntinha de ouro trazida sempre no pescoço e nele pendente um pequeno crucifixo, como insígnia do Cristianismo. Nas mãos delicadas uma aliança larga no anular esquerdo. Na mão direita o anel de formatura muito bonito. Suas unhas eram coloridas e bem feitas. No braço esquerdo um relógio especialmente feminino. E as suas vestes requintadas, completavam o atavio do seu corpo.

Mas a sedução da simpatia, a soma final dos seus encantos estava na sua voz e no fundo do seu sorriso. E toda vez que eu a via sorrir e pronunciar o meu nome me tomava por um devaneio egoísta, causando-me uma febre de ciúme de meus colegas. Eu contava nove anos de idade e sentia por Dona Ninita um amor silencioso e surdo de menino tímido, calado e carente; envolto tão somente nos pensamentos repletos e contidos na pureza da alma e na isenção de pecado. Entendo que eu me sentia diante de um anjo bom quando a frente de Dona Ninita.

O tempo, esse construtor impiedoso, somente me permitiu revê-la vinte anos mais tarde, quando já com vinte e nove anos de idade, casado com uma parenta sua, da família Alvarenga, fui transferido de São Paulo para Divinópolis. --- Eu como caixa do Bemge, vejo chegar àquela senhora de porte distinto e elegante, trajando um vestido preto, quando me pergunta: É você o Armando? E eu, querendo reconhecê-la, fiquei um tanto assustado e confuso, respondo: sim sou eu... E ela comenta: “O Rui Frade foi quem me disse que havia um rapaz de Candeias, com o nome de Armando trabalhando aqui!... Eu fui sua professora, você se lembra?” ---E eu respondo totalmente aturdido... Emocionado: Dona Ninita! Que alegria!

Dada as circunstâncias não pude abraçá-la, naquela hora, mas como desejei isso.
Para mim aquele momento foi um grito de Gloria a Deus nas alturas e felicidade para mim aqui na terra.

Esse encontro me fez tanto bem. Proporcionou-me uma verdadeira alegria. Eu jamais teria esquecido a meiguice recebida de Dona Ninita na minha infância. E entre tantos gestos de carinho que recebi de tão querida professora, um deles encontra-se nítido nas minhas lembranças, como se tivesse acontecido ainda hoje:

Certo dia, Dona Ninita, talvez como parte do programa de ensino, perguntava aos alunos, um a um, o que desejariam ser na vida, no futuro. A turma era composta por meninos pobres e ricos. A cada pergunta, o aluno respondia qual a carreira pretendida. E como os sonhos de crianças são insondáveis, foram as mais diversas respostas. Contudo, é de todo patente, que naquele tempo as diferenças sociais eram muito mais marcantes do que nos dias atuais.

Quando a pergunta era feita a um menino rico e esse respondia que queria ser um engenheiro, um médico ou um advogado, a resposta era acolhida com o silêncio dos pobres. Quando a pergunta era feita a um menino pobre e esse respondia que desejava ser um doutor, os alunos ricos bradavam com grande zombaria, numa manifestação irônica, como se ridículo fosse, um pobre vir a ser algum doutor.

Consciente de ser um patrimônio da pobreza e diante daquele clima hostil, e sem fazer uma analise a respeito, eu não fui titubeante ao responder na minha vez que desejaria ser um motorista de caminhão. Mas a parte forte não me perdoou. Um grito alto e em bom som, surgiu: “E no caminhão de quem você vai aprender a dirigir? Só se for à furreca do Zé Firmino!?”

Zé Firmino era possuidor de um velho caminhão, com uma carroçaria adaptada para pequenos transportes. E tratando-se de um veículo pobre e desajeitado, valia de chacota do povo, como sinônimo de pobreza.

Sensibilizado e ofendido, escondi meu rosto sobre as mãos para ocultar as lágrimas. E nesse momento, Dona Ninita, levantou-se de sua mesa, aproximou-se de mim e colocando a mão sobre minha cabeça, disse carinhosamente: O que é isso Armando!? Um menino inteligente como você, educado, estudioso, se importando com o que o seu colega diz? Fique tranquilo meu filho, Você não só vai ser motorista como também vai ter o seu caminhão... E faço votos que seja um caminhão novinho, porque você merece.

E dirigindo-se ao colega que me insultou perguntou-lhe o que gostaria de ser no futuro e teve a resposta de que talvez viesse a ser um doutor, quando Dona Ninita lhe disse: Eu gostei mais da resposta do Armando. 

Eu nunca fui caminhoneiro; e não sei o que seguiu o meu colega. Mas as palavras de Dona Ninita ficaram comigo como um alento por toda a minha vida.

Hoje, aos 71 anos de idade, pouco me importa a vivida infância proletária. Mas o que me importa, verdadeiramente, foram os carinhos recebidos de pessoas como, Dona Ninita Alvarenga, professora que acrescentava no jeito de professorar algo mais como exemplos de vida em forma de sentimento. Alguma coisa a mais que possa ser usado pela vida afora numa forma de felicidade do intimo e um contentamento de alma sem participação de sofrimentos.

Dona Ninita para mim foi um exemplo de respeito. Não me lembro de vê-la com a vara na mão para assustar um aluno faltoso; mas posso me lembrar da força da sua palavra. 

Lembro-me, como se fosse hoje, quando Dona Ninita no final da aula chamou-me junto ao meu colega agressivo e disse-lhe com voz forte: “ficará muito bonito se você pedir desculpas ao Armando”. E assim foi feito. Abraçamo-nos e nos tornamos muito amigos, grandes amigos.

Muito obrigado Dona Ninita. O seu nome está bem guardado não só no meu cérebro, como também no meu coração.

Armando Melo de Castro

Candeias MG Casos e Acasos

 



Um comentário:

Claudia Saldanha disse...

Armando, que crônica hein!? Conheci seu blog hoje por indicação do Márcio Teixeira. Nossa, me levou às lágrimas! Sou de Candeias, e sei realmente o que é lembrar de uma professora tão querida! Estudei no Pe. Américo e tenho até hoje na minha lembrança a voz, o carinho e sinto até o perfume da minha primeira professora: Dª Maria Irene Paiva! Conheço sua mãe, conheci seu pai, lembro me do Carlos, conheço seus sobrinhos Giuliano, Gisele e Geovana. Grande abraço para você, espero um dia encontrá-lo em Candeias.
compsaldanha@hotmail.com