Num dos estojos mais delicados da minha memória encontra-se guardado o meu terceiro ano de escola, frequentado no Grupo Escolar Padre Américo, no ano de 1955, em Candeias, quando foi minha professora, a Sra. Ninita Alvarenga.
Naquele tempo, não havia esse tratamento de “tia” dado hoje em dia, pelos alunos às professoras. Chamar uma professora de tia era como um contrassenso, mesmo porque, antes o tratamento de tia a quem não fosse irmã dos pais ou avós, era quase que uma agressão moral. Esse tipo de tratamento, não sendo aos verdadeiros tios, era como se uma referência dada às moças que não se casavam... Aos pederastas com mais de quarenta anos e às donas dos bordéis. Chamar uma moça de tia não era educado. Todavia, esse hábito que começou a surgir com o advento do Jardim da Infância, não tem nada a ver com os tratamentos pessoais existentes na língua portuguesa. Isso, a meu ver, não é elegante para ser usado numa escola. Mas, fazer o quê? Tanta coisa muda para pior!... Já dizia a Dona Salomé... Grande Dona Salomé!... Antiga professora candeense.
Talvez eu fosse o
dono da maior timidez entre os alunos da minha turma. Comecei o primeiro ano em 1953.
A minha primeira professora, Dona Maria do Carmo Alvarenga, a segunda Srta. Enir Parreira e a terceira foi Dona Ninita Alvarenga.
Eu repeti dois anos no primário envolvidos numa série de problemas. Naquele tempo havia uma prova final, e essa prova final reprovava os alunos por qualquer motivo, não havia essas chances que se tem hoje os alunos; mesmo porque, eram muitas as vagas e as professoras saiam de casa em casa fazendo matriculas. O Grupo Escolar Padre Américo não tinha alunos suficientes para a sua lotação. Contava pouco tempo a sua inauguração e os alunos não tinham uma idade padrão.
A minha paixão
pelas professoras sempre esteve centrada na querida, Dona Ninita Alvarenga,
cujo retrato encontra-se perfeito no álbum da minha memória.
Ela era linda no
seu porte completo: Os seus cabelos pretos levemente ondeantes cortados abaixo
da nuca, transparecendo a maciez da seda; um olhar manso e de um negrume
quente; o nariz fazendo ângulo com o queixo redondo e suave; os lábios místicos
cobertos por um batom vermelho e brando, completando o rosto de um anjo
sorridente. A cor clara e um corpo ressaltando uma cintura fina com uns quadris
um pouco desenvolvidos, dando mostra do feitio de um violão. Uma correntinha de
ouro trazida sempre no pescoço e nele pendente um pequeno crucifixo, como
insígnia do Cristianismo. Nas mãos delicadas uma aliança larga no anular
esquerdo. Na mão direita o anel de formatura muito bonito. Suas unhas eram
coloridas e bem feitas. No braço esquerdo um relógio especialmente feminino. E
as suas vestes requintadas, completavam o atavio do seu corpo.
Mas a sedução da
simpatia, a soma final dos seus encantos estava na sua voz e no fundo do seu
sorriso. E toda vez que eu a via sorrir e pronunciar o meu nome me tomava por
um devaneio egoísta, causando-me uma febre de ciúme de meus colegas. Eu contava
nove anos de idade e sentia por Dona Ninita um amor silencioso e surdo de
menino tímido, calado e carente; envolto tão somente nos pensamentos repletos e
contidos na pureza da alma e na isenção de pecado. Entendo que eu me sentia
diante de um anjo bom quando a frente de Dona Ninita.
O tempo, esse
construtor impiedoso, somente me permitiu revê-la vinte anos mais tarde, quando
já com vinte e nove anos de idade, casado com uma parenta sua, da família
Alvarenga, fui transferido de São Paulo para Divinópolis. --- Eu como caixa do
Bemge, vejo chegar àquela senhora de porte distinto e elegante, trajando um
vestido preto, quando me pergunta: É você o Armando? E eu, querendo
reconhecê-la, fiquei um tanto assustado e confuso, respondo: sim sou eu... E
ela comenta: “O Rui Frade foi quem me disse que havia um rapaz de Candeias, com
o nome de Armando trabalhando aqui!... Eu fui sua professora, você se lembra?”
---E eu respondo totalmente aturdido... Emocionado: Dona Ninita! Que alegria!
Dada as
circunstâncias não pude abraçá-la, naquela hora, mas como desejei isso.
Para mim aquele
momento foi um grito de Gloria a Deus nas alturas e felicidade para mim aqui na
terra.
Esse encontro me fez
tanto bem. Proporcionou-me uma verdadeira alegria. Eu jamais teria esquecido a
meiguice recebida de Dona Ninita na minha infância. E entre tantos gestos de
carinho que recebi de tão querida professora, um deles encontra-se nítido nas
minhas lembranças, como se tivesse acontecido ainda hoje:
Certo dia, Dona
Ninita, talvez como parte do programa de ensino, perguntava aos alunos, um a
um, o que desejariam ser na vida, no futuro. A turma era composta por meninos
pobres e ricos. A cada pergunta, o aluno respondia qual a carreira pretendida.
E como os sonhos de crianças são insondáveis, foram as mais diversas respostas.
Contudo, é de todo patente, que naquele tempo as diferenças sociais eram muito
mais marcantes do que nos dias atuais.
Quando a pergunta era
feita a um menino rico e esse respondia que queria ser um engenheiro, um médico
ou um advogado, a resposta era acolhida com o silêncio dos pobres. Quando a
pergunta era feita a um menino pobre e esse respondia que desejava ser um
doutor, os alunos ricos bradavam com grande zombaria, numa manifestação
irônica, como se ridículo fosse, um pobre vir a ser algum doutor.
Consciente de ser um
patrimônio da pobreza e diante daquele clima hostil, e sem fazer uma analise a
respeito, eu não fui titubeante ao responder na minha vez que desejaria ser um
motorista de caminhão. Mas a parte forte não me perdoou. Um grito alto e em bom
som, surgiu: “E no caminhão de quem você vai aprender a dirigir? Só se for à
furreca do Zé Firmino!?”
Zé Firmino era
possuidor de um velho caminhão, com uma carroçaria adaptada para pequenos
transportes. E tratando-se de um veículo pobre e desajeitado, valia de chacota
do povo, como sinônimo de pobreza.
Sensibilizado e
ofendido, escondi meu rosto sobre as mãos para ocultar as lágrimas. E nesse
momento, Dona Ninita, levantou-se de sua mesa, aproximou-se de mim e colocando
a mão sobre minha cabeça, disse carinhosamente: O que é isso Armando!? Um
menino inteligente como você, educado, estudioso, se importando com o que o seu
colega diz? Fique tranquilo meu filho, Você não só vai ser motorista como
também vai ter o seu caminhão... E faço votos que seja um caminhão novinho,
porque você merece.
E dirigindo-se ao colega que me insultou perguntou-lhe o que gostaria de
ser no futuro e teve a resposta de que talvez viesse a ser um doutor, quando
Dona Ninita lhe disse: Eu gostei mais da resposta do Armando.
Eu nunca fui
caminhoneiro; e não sei o que seguiu o meu colega. Mas as palavras de Dona
Ninita ficaram comigo como um alento por toda a minha vida.
Hoje, aos 71 anos de
idade, pouco me importa a vivida infância proletária. Mas o que me importa,
verdadeiramente, foram os carinhos recebidos de pessoas como, Dona Ninita
Alvarenga, professora que acrescentava no jeito de professorar algo mais como
exemplos de vida em forma de sentimento. Alguma coisa a mais que possa ser
usado pela vida afora numa forma de felicidade do intimo e um contentamento de
alma sem participação de sofrimentos.
Dona Ninita para mim
foi um exemplo de respeito. Não me lembro de vê-la com a vara na
mão para assustar um aluno faltoso; mas posso me lembrar da força da sua palavra.
Lembro-me, como se fosse hoje, quando Dona Ninita no final da aula chamou-me junto ao meu colega agressivo e disse-lhe com voz forte: “ficará muito bonito se você pedir desculpas ao Armando”. E assim foi feito. Abraçamo-nos e nos tornamos muito amigos, grandes amigos.
Lembro-me, como se fosse hoje, quando Dona Ninita no final da aula chamou-me junto ao meu colega agressivo e disse-lhe com voz forte: “ficará muito bonito se você pedir desculpas ao Armando”. E assim foi feito. Abraçamo-nos e nos tornamos muito amigos, grandes amigos.
Muito obrigado Dona
Ninita. O seu nome está bem guardado não só no meu cérebro, como também no meu
coração.
Armando Melo de
Castro
Candeias MG Casos e
Acasos
Um comentário:
Armando, que crônica hein!? Conheci seu blog hoje por indicação do Márcio Teixeira. Nossa, me levou às lágrimas! Sou de Candeias, e sei realmente o que é lembrar de uma professora tão querida! Estudei no Pe. Américo e tenho até hoje na minha lembrança a voz, o carinho e sinto até o perfume da minha primeira professora: Dª Maria Irene Paiva! Conheço sua mãe, conheci seu pai, lembro me do Carlos, conheço seus sobrinhos Giuliano, Gisele e Geovana. Grande abraço para você, espero um dia encontrá-lo em Candeias.
compsaldanha@hotmail.com
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