Numa revirada nas gavetas das minhas memórias, encontro-me com Dona Julita Macêdo, quando ela morou numa casa antiga que ficava onde está hoje, o prédio do Zé do Anjo, ao lado do galpão que estabelecia a sua oficina mecânica.
Eu tinha os meus doze anos e meu pai havia me colocado como aprendiz na oficina mecânica. Naquele tempo era assim: o pai chegava a casa e dizia ao filho: eu arrumei serviço para você, vai começar amanhã. Não tinha esse negocio de saber de salário e nem o que iria fazer. Era uma ordem e pronto. Os pais arrumavam serviço para os filhos trabalhar de graça e o patrão dava o que queria.
Dona Julita estava sempre costurando ou bordando, na sala e quem passasse pela rua poderia vê-la com a sua filha Ivone enquanto trabalhavam e ouviam rádio. Lembro-me de certa feita, ver e ouvir a Ivone cantando junto com Caubi Peixoto, através do rádio, a canção, “Conceição”, quando esta fazia grande sucesso.
Posteriormente ela mudou-se para uma casa nova na Rua do Capão, hoje Rua Pedro Vieira de Azevedo. Dona Julita mulher de estatura alta, magra, olhar severo, filha do coronel João Afonso Lamounier. Boa mãe, boa amiga e muito brava. Não mandava recados.
Com essa mudança, a velha casa ficou abandonada e havia por lá um grande quintal com um pomar cheio de pés de laranjas. Eu no verde dos meus anos trabalhava sem remuneração num dos meus primeiros empregos, na oficina mecânica do Zé do Anjo. --- Não existia essa história de patrão dar lanche para empregados. A gente tomava o café da manhã, almoçava às 11 horas e jantava quando voltava à tarde para casa. Não havia horários. Parava de trabalhar quando a noite chegava. A noite era o relógio.
Da oficina poderiam ser vistas as belas frutas no quintal daquela casa esquecida; Laranjas baianas, doces e deliciosas que cresciam os meus olhos, separadas de minhas mãos apenas por um velho muro quebrado. ------ Ali os olhos viam; o estômago pedia; o cérebro autorizava e a consciência julgava.
Incentivado pelos colegas, Pato, Patinho, Bento, Carlinhos da Alzira, eu comecei a entrar no quintal da casa abandonada e roubar laranjas para todos.
Até hoje eu sinto o sabor doce dessas laranjas. No meu entender de menino eu imaginara não estar cometendo um roubo. Estaria apenas subtraindo aquilo que estava se perdendo...
Algum tempo depois, ao passar pela porta do Sr. Nestor Lamounier, irmão de Dona Julita, eu pude avistá-la sentada à sala do Sr. Nestor, quando fui surpreendido com o seu chamado: ----- Oi menino da roupa suja vem aqui! -----Eu levei um grande susto sendo chamado por Dona Julita a qual foi me perguntando:
-----Como você se chama? De quem você é filho?
Respondi: Meu nome é Armando e meu pai é Zé Delminda. Diante daquele interrogatório e eu com a consciência pesada, tremi dos pés a cabeça. E ela continuou:
-----Fiquei sabendo que você anda roubando as minhas laranjas...
Respondi: Foi só uma que chupei! A senhora está enganada não foi muita não...
----- Só uma né? Sei!... Você além de ladrão de laranjas ainda é um cara-de-pau. Entrou-se no meu quintal e apanhou uma laranja, é roubo. Você não é o menino que trabalha no Zé do Anjo?
Sou mais lá tem outro...
----Mas quem rouba as laranjas?
----Mas quem rouba as laranjas?
E eu chorando respondi: Sou eu...
----Amanhã eu vou lá conversar com o Zé do Anjo...
Naquele dia eu não dormi. Eu chorei e não podia contar o motivo. E pensava: aquela mulher vai me fazer perder o emprego... Vai me fazer tomar uma sova do meu pai. Era Semana Santa e eu rezei o tempo todo pedindo a Jesus e Nossa Senhora das Dores que me ajudasse. ----- Rezei para todos os santos e em especial para o meu Santo Antônio, mas pensando: eles não vão proteger um ladrão de laranjas, mas parece que todos me ajudaram naquele momento.
No outro dia, ao chegar à oficina, eu pensei que iria sentir um colapso, quando vi Dona Julita bem ali saindo da velha casa e se encontrando comigo na entrada da oficina. Pensei, é agora que ela vai falar com o Zé do Anjo para me delatar. ---- Mas não. Ela esperava a mim e veio logo dizendo: "Oi menino! Eu resolvi Você podes apanhar as laranjas desde que seja só para você, para os outros não.
Diante daquela surpresa eu comecei a chorar e não tive o que falar. Minha voz sumiu e fiquei por entender o motivo daquela flexibilidade. Talvez tenha sido pelo fato de estarmos em plena semana santa. Mas eu nunca mais apanhei de suas laranjas. Nunca mais entrei no quintal de alguém. Nunca mais chupei uma laranja que não fosse conseguida de forma lícita. Tornamo-nos amigos; onde eu a via, eu aproximava-me dela a cumprimenta-la e mesmo já depois de crescido, Dona Julita me chamava de menino.
Anos depois como pintor de paredes a sua casa foi o meu ultimo trabalho em Candeias, antes de ser levado para São Paulo pelo seu filho Antônio Macêdo, para trabalhar no Banco Mineiro da Produção S.A.
Sabendo ela que eu iria dali em diante trabalhar no Banco ela me disse:
---Você é um menino bom. Vai dar-se bem no Banco. Siga o exemplo do Antônio que você será um gerente. -.
E os anjos disseram AMÉM.
Obrigado Dona Julita pela aula de vida que a senhora me deu. Onde quer que esteja receba o meu abraço e o meu agradecimento carinhoso.
Armando Melo de Castro
Candeias MG Casos e Acasos
Um comentário:
Armando, você trabalhou na oficina do Zé do Anjo, será que se lembra do meu tio Zé Candeia?
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