O
ESTAFETA BUFÃO.
Quando me encontro em
Candeias, observo sempre o quanto às coisas mudaram em comparação ao meu tempo
de menino. Ao passar pela Rua Coronel João Afonso, minha memória retrata algum
fato que me leva a um passado distante. Num tempo em que Juntava o atraso em
que o mundo ainda se encontrava com a falta de expectativa vivida por Candeias.
A bem da verdade vive até hoje, mas naquela época, sem dúvida, era bem pior.
Não havia os meios de comunicação atuais. O transporte era precário. A saúde do
povo deixava muito a desejar. A educação em Candeias era só o primário...
Vivíamos a era da autodidaxia. Somente os mais aquinhoados conseguiam se
formar. Enfim, o mundo era mais atrasado e o povo brasileiro era bem mais
pobre.
Verifica-se que o mundo progrediu muito foi nos últimos cinquenta anos.
O meio de transporte dificultava muito a vida das pessoas. Uma viagem, por
exemplo, de Candeias à Formiga demorava mais de duas horas se o trem cumprisse
o horário normal. Mas isso era muito difícil. Raramente andava na hora certa.
Além do mais o desconforto naqueles trens, então chamados de “Maria Fumaça”,
causados pela fumaça e o carvão procedentes da caldeira dessas locomotivas
deixavam os passageiros parecidos com porteiros de hulheira. Era terrível... Os
viajantes usavam, naquele tempo, os tais guarda-pós, um tipo de jaleco para se
proteger da fumaça e da fuligem, e, nas jardineiras para se proteger da poeira.
O transporte rodoviário contava apenas com uma pequena jardineira do
Antonio do Eurides, irmão do Euridinho, casado com a Luci do Zé Chorão. Era um
pequeno coletivo cuja lotação não superava a conta das quinze pessoas; e fazia
a linha Campo Belo Formiga, passando pela usina do Bonaccorsi, Baiões, etc.
Telefone não havia. Só se via esses aparelhos nos filmes americanos. Televisão?
Se alguém contasse que teria visto uma televisão era questionado com toda
minudência. Meu avô esteve em São Paulo, no ano de 1954, quando foi fazer uma
cirurgia, e voltou de lá contando que havia visto uma televisão no Hospital e
com isso teve assunto por muito tempo. Dizia ele que os internados do interior
olhavam atrás da televisão... Atrás da parede, a fim de decifrar o mistério da
coisa.
E nesse cenário de vida, havia os estafetas e mandaletes. Eu mesmo fui
mandalete. Entreguei carta em fazendas, quando menino, para ganhar uns
trocados. Era a única forma de um roceiro receber uma correspondência da
cidade. Não havia caminhões leiteiros e nem o transito que existe hoje. O homem
do campo ficava mês sem vir à cidade. E o meio de transporte eram cavalos,
burros etc. Muitos ficavam até um ano sem vir na paróquia e vinham apenas em
época de semana santa. ---Assim sendo quero relembrar aqui o estafeta
particular: HENRIQUE SOTERO.
Este homem conhecia todas as cidades ao redor de Candeias pelos
seus serviços de entrega de encomendas e cartas. Ia sempre a Oliveira levar
cartas e encomendas para o Bispo a mando do Monsenhor Castro, então, Padre
Joaquim. Itapecerica, Camacho, Cristais, São Francisco e muitas outras
localidades onde não havia transporte direto, ia lá o Henrique, montado em sua
bicicleta Phillips ou a pé empurrando o seu carrinho de mão. Quando a encomenda
era com urgência, ele viajava a noite inteira. Não tinha medo. Vivia
bazofiando-se da sua coragem e da competência para entregar uma encomenda. Era
o Sedex da época. Os serviços do correio não eram confiáveis.
O Henrique Sotero morava apenas com a sua mulher Maria e o
cachorro Lírio. Era um animal mestiço. Uma espécie de cão de fila com
perdigueiro; amarelado e trazia pendurado no pescoço um pequeno cincerro Esse
cachorro era o filho, o neto, o sobrinho, enfim: o Lírio era tratado como se
fosse prole daquela família. Comia no prato – dentro da cozinha – como se fosse
gente. Era tratado de “fifio” pela mulher do Henrique, “Maria do Rique” como
era chamada. ”Quando o Lírio morreu, houve cerimonial fúnebre. Chegaram a
pensar em enterrá-lo no cemitério, como isso foi impossível, fizeram para ele
um túmulo no fundo do quintal e sobre o qual cravaram uma cruz. A cruz...
símbolo da remissão do pecador cristão que ocupa o primeiro lugar na escala
evolutiva da zoologia, ou seja, o homem... Ali colocada sobre a cova de um
irracional de propriedade de um casal tipo herege sabeliano. Com persignação e
tudo mais que um animal racional por vezes não tem. (Durma-se com um barulho
desses)
Morador a quatro casas abaixo da minha, ficava normalmente de cócoras na
porta de sua casa. Como ele não tinha filhos, gostava muito da meninada. Na minha
rua e no quarteirão, havia muitos meninos: Zé Branco, Tião Babão, Zé, Chico,
Tião, Vicente e Bento, todos do Arlindo Arlindo Barrilinho, Ademir do Erasto,
Vicente do Tio João e muitos outros que no momento me falha a memória. Se somar
todos dá uma verdadeira platéia para um espetáculo de circo. Isso é o que
acontecia constantemente na porta da casa do Henrique Sotero que era um
verdadeiro bufão. E a sua grande fama era de peidorreiro. Estava sempre a
dizer: --- Certa vez dei quarenta peidos --- À tarde, na porta de sua casa,
via-se sempre uma aglomeração de crianças da vizinhança. E ele apesar de não
ter a cara muito boa era muito engraçado. Gostava de fazer perguntas para a
meninada. Contar mentiras como, por exemplo: falar que tinha sido grande jogador
de futebol e que teria voado de avião o qual teria caído e apenas ele se
salvado... Que já teria sido artista de circo. Fazia algumas mágicas cujos
truques eram percebíveis pela garotada. Mas o forte dele era peidar
ruidosamente ali na porta da rua, passasse quem passasse por ali.
As mulheres sempre iam pelo outro lado da rua para não passar pelo
vexame de vê-lo soltar as suas ostentações ruidosas, ou seja, os seus flatos
sonoros de forma descarada fazendo com que a pessoa ficasse numa situação de
constrangimento. Mas, com a meninada era diferente. Ele se punha de pé à sua
porta e os meninos logo gritavam: “Sô Henrique e os peidos?” – E ele dizia
mostrando os seus dois dentes de ouro: --- Ôceis gosta de peido hem cambada de
cambuquira!---. Começava o espetáculo e ele já dizia apontando o dedo
indicador: -- Esse menino grandão ai, esse é procê: PUNNNNNNNNNNNNN – Agora vai
um para esse menino piquitito ai: apontava o dedo indicador e: PIUNNNIIIINNNN.
Conforme era o tamanho do menino era o tamanho do peido. Parecia que tinha uma
corneta acoplada ao ânus.. Soltava um para cada menino. E se a Maria, mulher
dele, chegasse por perto e falasse alguma coisa ele dizia: esse é procê Maria:
PUNHINFUINNNNNNNNNNNNN. E a Maria saia depressa dali. Ai é que a coisa ficava
mesmo engraçada e a meninada quase morria de tanto rir. Ele não ria e fazia
isso com a cara fechada “No finalzinho falava: Agora turma de cambuquira lá vai
o miado do gato: PUNHHHHHHHHHHAAAAAAAAAAAAAAAAAUUUUUUUUUUUUU!!!
Certa vez, a Neli Furtado, então freguesa do Vicente Vilela,
próximo dali, ia passando quando o Henrique soltou um fumegante em forma de
toque de corneta.. E ela com os seus sapatos de salto alto, numa rua então sem
calçamento, ao adiantar o passo para fugir do vexame, ia caindo de solavanco e
foi salva pelo Geraldo do Orcilino que estava próximo e a salvou de uma
vergonha maior. E nessa hora o Henrique não ficou sem fazer o seu comentário
sucinto:“Viu só? A muié virou um peido”.E ela nunca mais se transitou pela
porta do Estafeta Bufão.
Era muito bom ser uma cambuquira
Armando Melo de Castro
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