Foto para ilustração do texto.
Um dos
trabalhos mais difíceis de ser executado por um servidor de prefeitura de
interior é o de fiscal. --- Aquele que se dispuser a ser um fiscal de
prefeitura e estiver disposto a cumprir o cargo com lealdade ser-lhe-á
necessário um preparo psicológico vigoroso para estar preparado de forma mental
e comportamental. Terá que estar preparado para ouvir os discursos da ignorância
e da intolerância; da impaciência e da incoerência. Desaforos não vão lhe
faltar.
--- O fiscal é sinônimo de cobrança e quando
se trata de pagar algo para o Estado já existem as resistências, agora o que
vem a ser cobrado por um fiscal chega a ser recebido como um castigo injusto. E
esse angu de imposto e política é cheio de caroços. Afinal, ninguém concorda
com Jesus Cristo quando disse: “Dai a César o que é de César”.
Evidentemente
o fiscal ao atuar o infrator ele o faz baseado nas leis. No entanto o
fiscalizado quer sempre que o fiscal faça vista grossa. Se o prefeito foi eleito
com o seu voto, ele se acha injustiçado em ser multado; se é oposição ai então o
blábláblá é bem mais agressivo. O infrator, normalmente quer ser o juiz da
sentença para ser absorvido. ---Ser fiscal de prefeitura, em pequenas cidades,
é, sem dúvida, nadar contra a correnteza, é fazer chover num veranico, é lamber
os próprios cotovelos, é beliscar azulejo ou, ainda reciclar papel higiênico.
--
O
fiscal tem que enfrentar vereadores, secretários do prefeito, o prefeito e o
pior: toda a população da cidade. Isso porque cada um está olhando somente para
o seu lado e o fiscal terá que olhar o lado de todos.
Quanto menor for a cidade, maior será o número de eleitores exclusivistas.
E por
falar em fiscais de prefeitura, busco bem no fundo do lago da minha memória um
caso que houve entre o meu Tio João Delminda e o fiscal da Prefeitura de
Candeias na década de 50: JOÃO ALVARENGA.
Cumpre-me,
comentar que as pessoas da linhagem Alvarenga, de nossa cidade de Candeias, são
pessoas educadas, doutrinadas, lecionadas e gentis. E João Alvarenga era um
legítimo Alvarenga: respeitoso, prestativo, atencioso, explicado e obsequioso.
Parece até que teria sido escolhido a dedo para a função de fiscal.
Magro,
alto, pouca barba, chapéu de lebre e paletó de brim; sempre tragando um cigarro
de palha e visto rodando a cidade buscando os infratores como chiqueiros de
porcos e galinheiros fétidos. Nesse tempo não era proibido criar um porco na
cidade, mas se o cheiro do chiqueiro fosse denunciado por um vizinho, lhe seria
devida uma multa. Construções fora do alinhamento da rua e emplacamento de
carroças de tração animal e bicicletas. Tudo isso eram as principais causas das
infrações a cargo do fiscal da prefeitura.
Os proprietários
de bicicletas desse tempo pagavam o imposto de emplacamento. As bicicletas eram
emplacadas pela prefeitura e lembro-me que o preço era Cr$ 30,00 (trinta
cruzeiros) por ano, incluindo a placa que era afixada entre os raios de uma das
rodas ou na ponta do para lama traseiro. A placa tinha o tamanho de uma tampa
de apagador e continha o ano, as iniciais da P.M.C (Prefeitura Municipal de
Candeias) e o número.
Meu tio
tinha uma bicicleta, marca Phillips pela qual ele tinha um luxo danado. Entretanto,
sempre fugia do João Alvarenga para não pagar o imposto. Achava que pelo fato
de usar a bicicleta apenas para andar pelas roças não precisava pagar o
emplacamento. Quando o fiscal descobriu que ele fugia da raia da sua
fiscalização, passou a frequentar a sua selaria que existia na Rua Coronel João
Afonso. Meu tio era
seleiro fazia e consertava selas. Num tempo que grande parte das do pessoal da
zona rural andava à cavalo.
João
Alvarenga chegava e, na maior educação, cumprimentava o meu tio chamando-o
educadamente de Xará e ficava por ali um pouco aguardando o meu tio falar
alguma coisa, mas como ele não falava nada, João Alvarenga aguardava o momento
de dar o bote:
---Vamos
emplacar a bichinha, hoje, Xará?
---Hoje,
eu tô meio quebrado, João...
---Não
tem importância não Xará, eu passo aqui outra hora, então...
Assim, ia
embora e meu tio comentava:
---Eu
nunca vi um cabôco mais preguento nesse mundo. Parece que é só eu que tem
bicicleta aqui nas Candeia, uai!...
Passaram-se
dois ou três dias, vinha lá o João Alvarenga de novo!
---Oi,
Xará, como é que vai? Tem trabalhado muito?
---Que
nada, João, tem pouco serviço. É por isso que ainda não puis placa na bicicreta.
--- Não,
Xará! Não se preocupa, não! Uma hora vai dá certo. Depois, eu passo aqui de
novo.
Assim que
ele saía o comentário era sucinto:
----Eu
num guento esse João Alvarenga! Ele é macio dimais! Manso dimais. Se ele
ficasse brabo, ficava mais fácil... A bicicreta é pra eu ir pescá, pra quê que
eu vô impracá isso?
Passaram-se
mais alguns dias e lá vem o fiscal de novo e, assim, foi um punhado de vezes
até que um dia:
---Olá,
Xará! Bom dia! Como andam as coisas? E, hoje, nós podemos emplacar a bichinha?
---Óia,
aqui, João! Vou falá uma coisa procê. Eu resorvi vendê a bicicreta e, quando eu
vendê, quem comprá paga o imposto. Eu tô ficando com vergonha docê, tendo essa
trabaiêra de vim aqui quais que todo dia. E, dipois, não tem me sobrado cobre
pra eu te pagá. E eu quase não ando nessa bicicreta. E ocê sabe né, trinta
conto, nessa pindaíba que eu tenho andado, me faz farta. Eu
vindi treis arreio nummeis e num ricibi nem um até agora.
---Xará
isso não vai acontecer de jeito algum. Você não vai vender a bicicleta não!
Onde já se viu isso: um amigo meu precisar vender a bicicleta para pagar o
imposto. ----- Olha, eu vou fazer uma coisa para você que eu nunca fiz para
ninguém. Eu tenho visto que os seus serviços aumentaram. Então, vou emplacar a
sua bicicleta e você me paga de três vezes, ou seja, Cr$ 10,00 (dez cruzeiros)
por mês. Contudo, tem um probleminha, Xará! Eu vou ter que lhe dar uma placa
que ninguém está querendo por causa do número.
--- E
qualé o número, João?
--- É o
24, Xará...
Diante
disso, meu tio enfiou a mão no bolso, pegou três notas de 10 e falou bem alto:
---Impraca
logo essa diaba dessa bicicreta, João! Pode impracá sem praca sem, sem número e
sem nada!. Só fartava agora me impracá com um número desse.
E João
Alvarenga, todo vitorioso, tirou do bolso do paletó uma plaquinha e disse:
--- Veja,
Xará! Eu tenho uma aqui que estava até encomendada, mas ela
vai ficar para você , é o número 33, “Olha só que numerozinho, chique”
um palpitão para a cobra.
E meu Tio
que era viciado no jogo de bicho, inclusive fazia progressão no touro disse com
uma voz pastosa:
---- Eu
num jogo em bicho não João!
E João
saiu vitorioso e dizendo:
Muito
obrigado Xará, fica com Deus! agora, é só o ano que vem, Xará...
E meu tio
João, com a boca totalmente fora de sintonia com a mente, disse:
---Vá ocê
tamém com Deus João!
Mas a
mente, com certeza, estava dizendo: --- Vá pro inferno, João! E vai correndo!
Vai voando!
Armando
Melo de Castro
Candeias
MG Casos e Acasos.
Um comentário:
"...As bicicletas eram emplacadas pela prefeitura...", isso é história!
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