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sábado, 29 de setembro de 2012

A LINGUA DE DONA ESTER.



                                                             Foto para ilustrar o texto.

No final da década de 50, chegou a Candeias uma mudança oriunda da cidade de Itapecerica, pertencente a uma família de classe média. O homem contanto os seus quarenta e cinco anos anos, mais ou menos; cabelo crespo, moreno, barba cerrada, pescoço curto, nariz achatado, boca de caçapa e cara bem trombuda.---- Chamava-se Gabriel. ---- A mulher tinha uma cor clara, do “corpo cheio”, o cabelo quase louro e muito mal cuidado. Chamava-se Luzia. --- O casal tinha apenas uma filha, a Sueli, com, aproximadamente uns quinze anos de idade; magra, feia, voz de taquara rachada e representava muito bem a miscigenação do pai com a mãe
-----Essa família chegou de uma forma bem sorrateira. Não conhecia ninguém e não tinha qualquer referência com o povo da Rua Coronel João Afonso, onde se estabeleceu morada, em um chalé de aluguel que existia no quarteirão entre as Ruas José Furtado e Professor Portugal.


A chegada desses novos vizinhos agitou a vizinha Dona Ester, a terceira vizinha acima da residência dos recém-chegados. ----


Sendo a minha família moradora do pedaço, eu diria que a família do Sr. Gabriel estava rodeada de bons vizinhos; contudo, para o bem da verdade, todos gostavam de uma fofoquinha. --- Dona Ester, a minha grande amiga Dona Ester, por uma questão peculiar à natureza humana, era como a embaixatriz da rua e, obviamente, auto se incumbiu de fazer os primeiros contatos e, consequentemente, dar as primeiras notícias sobre aquela família incognoscível. E, depois, sairia repartindo de casa em casa as informações.


Dona Ester era muito boa. Muito prestativa, contudo, entrava demasiadamente na vida da vizinhança. Ela era uma verdadeira paroleira daquelas recomendadas na Bíblia por Timóteo (5.13). ----- Assim, tão logo a nova família se estabeleceu, ela já planejou fazer uma visita de cortesia e oferecer os seus préstimos para os novos vizinhos. ----- Gostava de comer o mingau pelas beiradas. Para não queimar a boca, todavia, levava os outros a se queimarem. Mas desta vez o tiro saiu pela culatra.


Especialista em fofocas, ela colocava palavras na boca das pessoas e lhes puxava a língua. Dessa maneira, foi o que aconteceu logo que travou conhecimento com a família do Sr. Gabriel, especialmente, com Dona Luzia já nos primeiros dias.


Dona Ester não tinha filhos, porém, gostava muito de crianças. Naquela época, eu com os meus 13 anos, e sendo nossa vizinha, eu estava sempre na sua casa a seu chamado na boca de espera por seus doces de laranja da terra, de limão china, de figo, etc. Até hoje, eu aprecio muito esses doces que aprendi a saboreá-los com Dona Ester.


Certo dia Dona Ester me chamou para acompanha-la numa visita que faria aos novos vizinhos. ----- E eu, mais do que depressa, a acompanhei até aquela residência. Sem nunca ter imaginado o que iria acontecer lá. ------ Logo que por lá chegamos, ela já começou a dar asas a sua curiosidade:


---Sabe, Dona Luzia, eu tô muito feliz de ter ocêis de vizinho. Espero que goste de nóis.


----Desse modo, Dona Ester começou com a sua investigação. ------


----Seu marido mexe cum quê?


---Óia, Dona Ester. Ele ainda tá sem sabê o que vai fazê aqui, nas Candeia.


---Uai, mais ele veio sem sabê? Intão oceis deve ser forgado! Um home parado e a fumacinha da chaminé subindo com os preço dos trem pra hora da morte...


---Não. Nóis num é forgado, mais nóis é rimidiado. Meu pai morreu e dexô um pedacinho de chão. Aí nóis vendeu e tamo com os cobre, pensano no que qui nóis vai fazê. O Bié ta pensando em abri um vendinha.


---Abri mais venda aqui, nas Candeia? Aqui já tá cheio de venda!...


--É que o Bié cansou de mexê cum roça. Roça, Dona Ester, num dá nada...


---É... Mais quem tá custumado com roça vai quere mexê cum venda? E o fiado!? Venda é um trem danado. Se num vende fiado, num vende nada. Se vende fiado, tá quebrado. E o seu marido sem prática... Será que ele dá conta?! E ôta coisa: inquanto oceis ficá pensano, os cobre vai acabano, né, Dona Luzia.


---É... Isso é. Mais...


---Mais oceis acha que aqui, nas Candeia, é mió do que lá in Tapecerica? Tapecerica é cidade maió. Aqui num tem nada. E o seu marido é rocêro. Ele divia ter ficado quéto lá no pedacinho dóceis. Vim pará aqui, sem sabe o qui vai faze, sei não... Sei não, Dona Luzia! Eu já vi muita vaca ir pu brejo quesse negócio de vendê terra e vim pra cidade.


---É, Dona Ester. Mais a senhora sabe né...


--Será que o seu marido num tinha argum rabo preso não, Dona Luzia? Ocêis tá aqui tem uma semana e ele já foi lá duas vêis! (Falou rindo)


---Bão! Isso eu num sei não, Dona Ester.... Eu acho qui não...


---Ocê acha. Mais esse negócio de acha é onde se perde. Home é tudo safado. Ninguém conhece home mais do que eu. Quando eu num era direita, a sinhora precisava de vê das coisa que eu fiquei sabeno. Tinha muito homem que falava que gostava mais de mim do que das muié deles.


---Quer dizer que a senhora já foi?...


---Eu tive uma vida muito difícil, Mais dei sorte de arranjá um véio que me acampô. Daí, agora, eu sou uma muié arespeitada. Casei na igreja e sô até irmã do Coração de Jesus.


---Bão, eu num sei nada do Bié, não... Até hoje, tem sido bão... Nisso, abre a porta do quarto e sai lá de dentro o dono da casa. O Gabriel estivera dormindo acordara e estivera a escutar aquela prosa. Parecia o demônio cuspindo fogo. E já veio com tudo para cima de Dona Ester:


---Sai da minha casa sua cachorra sem dono. Sua égua véia. Isso aqui não é cabaré não. Aqui tem gente de bem. E ninguém pricisa de conseio de puta não, sua mula.


Eu levei um grande susto e já fui colocando asas nas minhas perninhas. Entretanto, Dona Ester começou a tremer e a tossir. No tossir, a sua dentadura saiu da boca e foi ao chão. Ao tentar apanhá-la, desequilibrou-se e caiu e ao cair, soltou um baita pum e, diante disso, o homem, ainda doido de raiva, gritou:


--Vixe Maria! Essa vaca véia nem prega tem mais!...


Eu suponho que ele estava com umas pingas na cabeça. Após o episódio, quase morri de dó de Dona Ester. “Tadinha ela era tão boa pra mim!”


"Os lábios do insensato provocam brigas e sua boca pede uma surra”. (Provérbios 18.6)


Armando Melo de Castro
Candeias Casos e Acasos

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