Há sessenta anos, mais ou menos, quando eu
contava pouco mais de dez anos de idade, o cenário rural de Candeias era
totalmente diferente. Lembro-me de que os roceiros não circulavam muito na
cidade. O homem do campo ficava retido, maior parte do tempo, no seu habitat
natural e, ao invés do barulho das máquinas, ouvia o canto dos pássaros.
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Uma grande parte deles
vinha à cidade somente por ocasião das festas religiosas: Semana Santa e/ou
Festa do Rosário. Outros, nem nessas oportunidades, apareciam. O meio rural era
bastante produtivo e quase suficiente para abastecer a cidade de grãos e
carnes.
Pouca coisa vinha de fora. Muitos ruralistas
compravam apenas sal para o gado do qual se guardava, também, para o uso
doméstico. Não existia o sal iodado e refinado de hoje, motivo pelo qual era
comum depararmos com pessoas das roças portadoras do bócio (hipertrofia da
glândula tireoide), o popularmente chamado papo. A partir da lei que obriga as
indústrias a colocar iodo no sal, esse mal desapareceu da nossa população.
A gente conhecia, de longe, uma pessoa
que chegava da roça após ter passado uma grande temporada sem vir a cidade.
Aquele jeitão de tabaréu era sentido de longe pelo povo da cidade. Existiam
diversas casas de comércio na zona rural, as chamadas “vendas”. E o que faltava
nessas vendas era levado como encomenda pelos caminhões leiteiros.
O pessoal mais antigo não falava farmácia
e sim botica. Lembro-me da esposa do Sr. Ulisses que morava em uma casa velha,
quase no final da Rua Pedro Vieira de Azevedo. Era uma mulher magra, alta,
rosto todo trançado de rugas, vestida sempre de preto, com um vestido quase
arrastando ao chão e que dizia para a minha tia Eliza, sua vizinha: “Eu num
bebo remédio de botica, nem vê! Isso num vale nada e pode até matá a gente.”.
Nesse tempo chegou da zona rural, de
mudança, para a cidade, uma família que morava que veio morar numa velha casa
na Rua Coronel João Afonso. ----- Marido, mulher e uma filha solteirona que se
chamava Ilda. -----A moça, quando viu que não arranjava o noivo lá na
roça, deu de cima do pai para vir para a cidade alegando que ele andava muito
doente.
Era um cidadão grosso, moreno, de uns
setenta anos, mais ou menos. Boca sem dentes, um bigode, tipo Cantinflas, e uma
barba de bode. Tinha um tremendo pigarro devido ao uso excessivo do cigarro.
Trazia no bolso traseiro das calças pega-frango uma cabeça de palha para
cigarros. Era meio risão, mas quando ria era interrompido por uma tosse seca
que quase lhe fazia perder o fôlego. Falava de um jeito engraçado e eu ficava
sempre escutando e apreciando o seu jeito de ser, envolvido no meu silêncio de
menino, proibido de entrar na conversa dos mais velhos.
Ele era amigo do meu avô João Delminda
e como ele estava sempre assentado num tôco à porta de sua casa, ele
sempre cercava o meu avô para um bate-papo.
---Ê, João Derminda, ocê num imagina
que sofrimento é o meu, aqui, na cidade, sô! Se num fosse a tentação da minha
fia, pra vim pra cá eu tava quitinho lá na roça. Ela tanto me isquentô pra vim
por causa da minha perringuice, que eu acabei vino. Mas eu acho que tô ficano
ainda mais perrengue aqui sô! A vida na cidade é muito custosa.
---Mas, o que foi Sebastião, o que te
aborrece?
---João! Tudo por aqui é mais difici.
Cê imagina! Aqui na cidade é tudo a peso dos cobres. Lá na roça, a luiz de
lamparina saía baratinha. Água é o quanto Deus dá; Lenha era só catá ou rachá.
Pegava uns pexes, matava uns bicho, tirava um leitinho, prantava uma rocinha;
vindia um bizerro e com isso ia viveno.
---Mas, é que você ainda não se
acostumou por aqui, Sebastião. A vida aqui não é tão difícil assim não.
---Cê tá doido, João! Cê qui pensa. A
Irda, minha fia, já é uma moça véia e foi só chegá, aqui na cidade, que já tá
com o fogo aceso. A minha muié inventô de toma banho todo dia e a fia tamém. A
Irda fica infiano umas coisa na cabeça dela. Lá na roça, que a água era dada,
elas popava, divéra, aqui, que é pagado, elas nada e rola.
Os preço é tudo pra hora da morte. Um
pesinho de arface tá custano quinhentos réis. Um môio de cove, o memo preço!
Isso tudo lá na roça era dado. Um franguinho quarqué tá custano um absurdo. Tá
tudo custano o ôio da cara. ---- Eu aluguei lá na roça e tô veno que num vai dá
pra eu vivê aqui, meus cobrinho lá vai indo tudo imbora.
---Calma, Sebastião, que tudo se
ajeita.
---Num ajeitá não, João. Já vi qui
não. A Irda, minha fia, lá vai disimbestano pur causa de home. Tá pareceno qui
nunca viu esse bicho. Agora danô a pintiá cabelo, passá pó de arrois e andá com
a boca vermeinha de batom. Esse trem num me agrada nem um pingo! E a muié dá
asa. Fica falano que se ela num se ajeitá vai fica véia, sem casá. Eu iscutei,
aí prá dentro, que ela já tá enrabichada num tal de Zé Galinha. Ocê conhece
esse moço, João? Ele é bão?
---Olha, Sebastião, eu não o conheço
direito, mas ele é famoso na cidade.
---Famoso?! Que fama que ele tem?
---É! Já foi preso, suspeito de ter
arrombado o Banco de Crédito Real, vive acompanhando parque de diversão pelo
mundo afora. Vive enchendo a cara de pinga. Já trabalhou num circo e aprontou
por lá. Dizem que ele levou uma sova de ficar com o couro quente. Gosta de
fazer mágicas, enfiando palitos de fósforo no nariz e soltando pela boca e
ainda cuspindo fogo. Toma uma dúzia de ovos cru. Já conseguiu dar 38 peidos, um
atrás do outro em troca de cerveja. E chama Zé Galinha por ser uma verdadeira
raposa nos galinheiros da cidade.
---Danou-se! Danou-se, João do céu! Nessas artura, a pureza da Irda já foi prus inferno. E esse caboco é o diabo. Quera Deus ele já num tê atrapaiado um monte de moça de famía puraí... Aí a Irda, sem duda, já rodô tamém...
O velho sebastião morreu pouco tempo
depois dessa conversa com o meu avô!
Armando Melo de Castro
Candeias MG Casos e Acasos
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