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domingo, 20 de maio de 2012

A VIRGINDADE DA ILDA.


                                                   Foto apenas para ilustração


 sessenta  anos, mais ou menos, quando eu contava pouco mais de dez anos de idade, o cenário rural de Candeias era totalmente diferente. Lembro-me de que os roceiros não circulavam muito na cidade. O homem do campo ficava retido, maior parte do tempo, no seu habitat natural e, ao invés do barulho das máquinas, ouvia o canto dos pássaros. ----- 

Uma grande parte deles vinha à cidade somente por ocasião das festas religiosas: Semana Santa e/ou Festa do Rosário. Outros, nem nessas oportunidades, apareciam. O meio rural era bastante produtivo e quase suficiente para abastecer a cidade de grãos e carnes. 

Pouca coisa vinha de fora. Muitos ruralistas compravam apenas sal para o gado do qual se guardava, também, para o uso doméstico. Não existia o sal iodado e refinado de hoje, motivo pelo qual era comum depararmos com pessoas das roças portadoras do bócio (hipertrofia da glândula tireoide), o popularmente chamado papo. A partir da lei que obriga as indústrias a colocar iodo no sal, esse mal desapareceu da nossa população.

A gente conhecia, de longe, uma pessoa que chegava da roça após ter passado uma grande temporada sem vir a cidade. Aquele jeitão de tabaréu era sentido de longe pelo povo da cidade. Existiam diversas casas de comércio na zona rural, as chamadas “vendas”. E o que faltava nessas vendas era levado como encomenda pelos caminhões leiteiros. 

O pessoal mais antigo não falava farmácia e sim botica. Lembro-me da esposa do Sr. Ulisses que morava em uma casa velha, quase no final da Rua Pedro Vieira de Azevedo. Era uma mulher magra, alta, rosto todo trançado de rugas, vestida sempre de preto, com um vestido quase arrastando ao chão e que dizia para a minha tia Eliza, sua vizinha: “Eu num bebo remédio de botica, nem vê! Isso num vale nada e pode até matá a gente.”.

Nesse tempo chegou da zona rural, de mudança, para a cidade, uma família que morava que veio morar numa velha casa na Rua Coronel João Afonso. ----- Marido, mulher e uma filha solteirona que se chamava Ilda.  -----A moça, quando viu que não arranjava o noivo lá na roça, deu de cima do pai para vir para a cidade alegando que ele andava muito doente. 

Era um cidadão grosso, moreno, de uns setenta anos, mais ou menos. Boca sem dentes, um bigode, tipo Cantinflas, e uma barba de bode. Tinha um tremendo pigarro devido ao uso excessivo do cigarro. Trazia no bolso traseiro das calças pega-frango uma cabeça de palha para cigarros. Era meio risão, mas quando ria era interrompido por uma tosse seca que quase lhe fazia perder o fôlego. Falava de um jeito engraçado e eu ficava sempre escutando e apreciando o seu jeito de ser, envolvido no meu silêncio de menino, proibido de entrar na conversa dos mais velhos.

Ele era amigo do meu avô João Delminda e como ele estava sempre assentado num tôco à porta de sua casa,  ele sempre cercava o meu avô para um bate-papo. 

---Ê, João Derminda, ocê num imagina que sofrimento é o meu, aqui, na cidade, sô! Se num fosse a tentação da minha fia, pra vim pra cá eu tava quitinho lá na roça. Ela tanto me isquentô pra vim por causa da minha perringuice, que eu acabei vino. Mas eu acho que tô ficano ainda mais perrengue aqui sô! A vida na cidade é muito custosa.

---Mas, o que foi Sebastião, o que te aborrece?

---João! Tudo por aqui é mais difici. Cê imagina! Aqui na cidade é tudo a peso dos cobres. Lá na roça, a luiz de lamparina saía baratinha. Água é o quanto Deus dá; Lenha era só catá ou rachá. Pegava uns pexes, matava uns bicho, tirava um leitinho, prantava uma rocinha; vindia um bizerro e com isso ia viveno.

---Mas, é que você ainda não se acostumou por aqui, Sebastião. A vida aqui não é tão difícil assim não.

---Cê tá doido, João! Cê qui pensa. A Irda, minha fia, já é uma moça véia e foi só chegá, aqui na cidade, que já tá com o fogo aceso. A minha muié inventô de toma banho todo dia e a fia tamém. A Irda fica infiano umas coisa na cabeça dela. Lá na roça, que a água era dada, elas popava, divéra, aqui, que é pagado, elas nada e rola.
Os preço é tudo pra hora da morte. Um pesinho de arface tá custano quinhentos réis. Um môio de cove, o memo preço! Isso tudo lá na roça era dado. Um franguinho quarqué tá custano um absurdo. Tá tudo custano o ôio da cara. ---- Eu aluguei lá na roça e tô veno que num vai dá pra eu vivê aqui, meus cobrinho lá vai indo tudo imbora.

---Calma, Sebastião, que tudo se ajeita.

---Num ajeitá não, João. Já vi qui não. A Irda, minha fia, lá vai disimbestano pur causa de home. Tá pareceno qui nunca viu esse bicho. Agora danô a pintiá cabelo, passá pó de arrois e andá com a boca vermeinha de batom. Esse trem num me agrada nem um pingo! E a muié dá asa. Fica falano que se ela num se ajeitá vai fica véia, sem casá. Eu iscutei, aí prá dentro, que ela já tá enrabichada num tal de Zé Galinha. Ocê conhece esse moço, João? Ele é bão?

---Olha, Sebastião, eu não o conheço direito, mas ele é famoso na cidade.

---Famoso?! Que fama que ele tem?

---É! Já foi preso, suspeito de ter arrombado o Banco de Crédito Real, vive acompanhando parque de diversão pelo mundo afora. Vive enchendo a cara de pinga. Já trabalhou num circo e aprontou por lá. Dizem que ele levou uma sova de ficar com o couro quente. Gosta de fazer mágicas, enfiando palitos de fósforo no nariz e soltando pela boca e ainda cuspindo fogo. Toma uma dúzia de ovos cru. Já conseguiu dar 38 peidos, um atrás do outro em troca de cerveja. E chama Zé Galinha por ser uma verdadeira raposa nos galinheiros da cidade.

---Danou-se! Danou-se, João do céu! Nessas artura, a pureza da Irda já foi prus inferno. E esse caboco é o diabo. Quera Deus ele já num tê atrapaiado um monte de moça de famía puraí...  Aí a Irda, sem duda, já rodô tamém...

O velho sebastião morreu pouco tempo depois dessa conversa com o meu avô!

Armando Melo de Castro

Candeias MG Casos e Acasos

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