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quarta-feira, 21 de março de 2012

O VINHO DO PAPA NO RESTAURANTE PINGUIM


Eu aprendi a falar palavrão na escola da vida. Em casa, minha mãe não deixava. Mas iniciei o meu curso de palavreado chulo quando trabalhei na tabacaria do Midinho, no princípio da década de 60. A Tabacaria ficava junto do seu salão de  barbeiro situado ao lado de onde atualmente está o Restaurante da Cidinha. Foi nesse tempo que eu comecei a colocar na minha boca os primeiros  palavrões. 

Como todo mundo sabe, salão de barbeiro aparece tudo quanto é sacanagem: piadas pornográficas e aquele noticiário público da vida íntima das pessoas. Uma forma de o barbeiro segurar o freguês por horas e horas, enquanto vai, “despelando” a clientela. Antigamente, salão de barbeiro aos sábados era lotado.

 Entretanto, um dos meus maiores professores da linguística chamada de "nome feio" foi o Lulu, dono do antigo Bar e Restaurante Pinguim de quem eu fui empregado após ter deixado a tabacaria.

 O Bar e Restaurante Pinguim situava-se numa velha casa verde de Dona Maroca, onde se encontra, hoje, a loja de produtos agrícola do Zé Alencar Ribeiro. O meu patrão, o Lulu, apesar de ter os seus picos de bom humor, falava palavrão com a cara séria. Eu sugiro ao leitor: pense um palavrão daqueles bem crus e eu garanto que já o terei ouvido da boca do Lulu uma centena de vezes.

 Lulu era um ser humano dos mais humanos que eu já conheci. Coração, extremamente, mole. Se ofendesse uma pessoa, no mesmo instante, ficava triste e até chorava. Contudo, na hora do seu desabafo, ele mandava até o Papa para os infernos. Se lhe pisasse no calo, era uma chuva de palavrões dos mais variados. A Dona Teresinha, sua esposa, que o diga. Ele falava o que vinha à boca e não falava baixo. Falava alto, muito alto. Ficava vermelho como um peru e, se o contestasse, era aí que a coisa ficava preta. Quando aparecia um freguês embriagado, vindo de outro bar, Lulu ficava uma fera e  sempre: “Vai catá a rudia onde você quebrou o pote seu filho da p...”.

 Certa vez Candeias ficou sem pároco e a Igreja era atendida precariamente por padres holandeses de Campo Belo ---- Um dia, o padre João Maria, um holandês que falava tudo enrolado e que tomava as suas refeições no Restaurante Pinguim, disse-lhe:

 ---“Ó Lólu, eu querer comer comida mais sem sal. Comida sua tem muito sal. Muito sal faz mal, Lólu! Na minha teurá, eu comer comida pouco sal.”.

 Isso foi o bastante para o Lulu soltar os cachorros no padre.

 ---Até o senhor, agora, vai encher o saco aqui, Padre? Por que não manda vir cumida da Holanda. Quem vem de lá, tem que acustumá com o rango daqui, ora. Océis lá, vive numa merda danada! Lá come sem sal porque não tem sal.

 Depois de uma dessa, Lulu acalmava e ficava puxando conversa com a pessoa ofendida. Neste caso, beirou o Padre e lhe disse:

 Olha,  padre amanhã, o sinhor vai cumé uma cumidinha sem sal. Eu tava era brincando.

 Lulu era um homem caridoso. Muito amoroso, era chorão e vivia se arrependendo quando ofendia alguém. Jamais se viu, em Candeias, um comerciante tratar os fregueses desta maneira. Mandava-lhes “tomar naquele lugar” sem que ninguém ficasse com raiva dele.

 Zé Viroto era um alfaiate que abandonou a profissão por causa do uso extravagante do álcool. Vivia nos bares pedindo uma pinga para os fregueses que estavam à beira do balcão. Mas, o ponto em que ele mais ficava era no Bar Pinguim, onde eu trabalhava. Uma pessoa inofensiva, baixo, chapéu de pano, dentes mostrando os pinos dos pivôs quebrados, moreno, conversa mole e quase sem barba. Quando Lulu estava com a veia boa, tudo bem. Porém, se Lulu já tivesse, também, dado uma bochechada com a água que o gato não bebe, ele já começava a brigar com Zé Viroto e aí todo mundo parava para assistir aquela encrenca que mais parecia um debate:

 Lulu --- Zé Virôto! Sai fora daqui!

 Zé Viroto --- Que é isso Lulu, eu num tô fazendo nada, uai!

 Lulu ---Tá inchendo o saco!

 Zé Viroto --- Que é isso Lulu, que saco que eu tô incheno?

 Lulu ---Tá pedindo pinga para os fregueses.

 Zé Viroto --- E isso é inche o saco?

 Lulu ---Ah Zé ho vai para o inferno!!!

 Zé Viroto --- Cê tá nervoso dimais Lulu, calma sô!

 Lulu - Vai pro diabo?

 Zé Viroto ---Nossa senhora, o que é isso meu Deus!

 Lulu ---Não me goza, seu merda!

 Zé Viroto ---E eu tô te gozando Lulu?

 Lulu ---Vai pros quintos ...

 Tinha um garrafão de uma pinga muito ruim, que ficava debaixo da pia. Ninguém bebia dela pela tão má qualidade. E quando chegava um desses pinguço Lula dava um gole dela e mandava ir embora. Jair pulga, Zé Viroto, e outros  alcóolatras eram fregueses dela porque era de graça.

Lulu botou um gole dessa pinga e disse ao Zé:

 Lulu --- Bebe essa merda e some.

 Zé Viroto --- Tá, tá bom Lulu, já estou indo embora. E bebeu aquela pinga das piores do mundo, como se bebesse o vinho do papa e disse: Tô indo embora Lulu...

 Eu notei que a cena teria já mexido com a sensibilidade do Lulu. Zé Viroto passou a mão na boca num gesto de satisfação e foi saindo. E Zé Viroto vai saindo como um cachorro escorraçado. Ao vê-lo sair humildemente e agradecido, Lulu ficou desassossegado. Olhou para o teto como se estivesse pedindo ajuda a Deus... Correu até a porta e gritou, Zé, Zé Viroto, volta aqui. E ele volta.

 Lulu pega uma garrafa da melhor pinga que tinha no bar, uma reserva sua, dois manda o Zé viroto assentar e serve duas pingas e pergunta: Você quer um tira-gosto Zé? E Zé Viroto responde não Lulu obrigado, põe só mais um pouquinho da pinga e eu fico satisfeito. E Lulu disse-lhe, põe você mesmo o tanto que você quiser. --- Os dois fizeram um brinde e Lulu disse: Essa é boa não é Zé? Melhor que o vinho do Papa você não acha?...

 E Zé Viroto se sentindo o homem mais feliz do mundo disse com uma frase que lhe era comum: “ É o tal negócio Lulu, eu nunca bebi o vinho do papa, não mas deve ser muito melhor”...

 Zé Viroto sai passando a mão na boca e diz feliz da vida.

 ---Até amanhã, Lulu, fica com Deus! E Lulu responde, vai com Deus também Zé, até amanhã.

 Ao vê-lo sair Lulu comenta comigo:

---Tadinho do Zé! Eu tenho muita dó dele! Também o filho da puta num deixa de beber, Eu acho que ele não passa do ano de 1965 não...

 E Zé Virôto morreu no ano de 1965.

 Armando Melo de Castro

Candeias MG casos e acasos.

 

2 comentários:

Franz disse...

Eu me lembro muito do Lulu e seu bar, mas não sabia nada destas particularidades de sua personalidade. Através de seus contos, Armando, vou conhecendo um pouco mais da minha terra. Muito bom.

Márcio Lamounier disse...

São várias as histórias do "Seu" Lulu, acho que se fossemos contar todas elas, o livro seria uma "bíblia". Só quem teve o prazer de conhecer o Lulu antes e depois de seu derrame é que sabe que aquele milagre de Jesus existe, ele simplesmente mudou da água para o vinho. Boas lembras e histórias de Candeias.