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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

TEREZA E O DESDENTADO



Dando um giro pelos cafundós da minha infância encontro-me em Candeias, exatamente na Rua José Furtado de Sousa.

No verdor dos meus anos, tive uma passagem por essa rua quando minha família esteve morando ali durante uma temporada, enquanto meu pai construía a nossa nova casa, na Rua Coronel João Afonso. A Rua José Furtado de Souza fica no Bairro da Ponte e começa onde faz esquina com a mercearia do Sr. Rogerio Ferreira; e vai até ao Bairro da Gruta. -- Por estar nela situado o antigo cabaré do Pedro Pitanga, ficou conhecida, também, como rua do Pedro Pitanga.

A curiosidade - a inocência e a esperteza psicológica, natural das crianças, fizeram com que durante os dois meses que residi ali, me proporcionassem um constante divertimento graças à infelicidade alheia. Aliás, os deslizes humanos, infelizmente, às vezes, são jocosos até mesmo para os adultos.

A casa que alugamos era de um pessoal da zona rural que vinha para a cidade somente em tempos de festas. Assim, teria ficado um quarto separado para que os objetos dos proprietários ficassem reservados. Ocupamos apenas o restante da casa: dois quartos, uma cozinha e mais uma pequena sala.

A casa não possuía banheiro e nem água encanada. Tomava-se banho de bacia ou de canecão, e as necessidades fisiológicas eram feitas nos fundos do quintal numa latrina fétida. Infelizmente, aquela cloaca nunca me saiu da lembrança. Aquele negócio de agachar e expor as partes sobre um orifício que dava para um fosso cheio de merda, sobre o zum zum de moscar verdes, nunca teria sido bem aceito por mim. Afinal, eu não estava disposto a dar um viva para a pobreza. Estava aflito para mudar para a nossa casa nova onde haveria de ter como uma melhora vida, um banheiro dentro de casa.

Com o desjeito da coisa e o problema das necessidades noturnas, meu pai foi à Casa Bonaccorsi e comprou três penicos. Foi a pior experiência que eu tive na vida, quando fiquei conhecendo esse utensílio chamado penico. Aquele negócio de encher o penico e coloca-
lo debaixo da cama era duro de suportar.

Frente a essa morada provisória havia uma tapera, ou seja, uma velha casa de pau-a-pique, num espaço sem tapumes, cujas paredes degeneradas me proporcionavam satisfazer a minha curiosidade de menino. Quando na ausência dos moradores eu ficava por ali escarafunchando com os olhos o que possuíam. Por dentro e por fora o cenário seria um prato cheio para o realismo de Gustave Courbet.

Mas, o que me inspirava a maior satisfação e a curiosidade dos meus olhos indiscretos, era o momento da chegada dos donos da casa.

O homem que contava mais ou menos uns vinte e cinco anos era tratado pelo apelido de Nego do Sodré. Elemento alto, claro, cabelos quase louros, bem aparados, barba rala e lanugem amarelada, contrastando-se com o seu apelido. Pescoço comprido e um sorriso pobre. Faltavam-lhe os dois principais dentes do maxilar superior. Quando falava, via-se a língua passear no céu da boca. Quando ria a pobreza do sorriso aumentava e a saliência das presas lhe dava a afeição de vampiro.-- Dizia-se pedreiro, mas segundo os patrulheiros do alheio, era um simples, meia-colher, que mal sabia assentar tijolos.

A mulher que se chamava Tereza era temperamental: cantava, ria e chorava em um só tempo. Brigava diariamente com o marido por causa da cachaça. Estatura frágil, rosto bem feito, contava uns vinte e poucos anos; morena cor de cuia, tipo cabritinha, cabelos curtos e lisos; dentes claros; mal trajada, sempre com um vestido bate-enxuga. Desse-lhe um trato, seria páreo para a escrava Isaura... --- Vivia maior parte do tempo na casa da mãe.

Ele, no seu estado sóbrio, era tranqüilo, mas se estava sob efeito da goteira tipo João Cassiano, ou seja, com a cara cheia de pinga, o pau comia, mas comia direito. E o que era difícil era vê-lo sóbrio. Isso só acontecia de manhã quando saia para o trabalho. Portanto, todos os dias havia espetáculo à tarde. Logo que ele chegava já começava a discórdia pelo fato de estar bêbado. E como a casa era pequena, a briga começava lá dentro e continuava pelo terreiro amplo à frente da rua.

Ele a puxava para fora, e o terreiro se transformava em picadeiro de circo ou ringue de luta livre. Assegurava-lhe os braços enquanto ela muito agitada não parava de falar e trocar palavrões:
--“Mardito! Iscumungado de Deus! Atentado do diabo! Cachaceiro... Disdentado!”.
--“Égua, cadela, vaca... Eu ainda te mato maritaca danada.”.

Como ele era muito forte, apenas a segurava para não apanhar, pois caso contrário ela o avançava tal qual uma galinha choca.

Para a minha contrariedade, logo aparecia um vizinho da turma do “deixa disso”, e acalmava os ânimos dos briguentos. Às vezes recomeçava, outras vezes, parava e saiam novamente. Sei dizer que eu ficava ali, o tempo todo, aguardando o espetáculo.

Certo dia, quando o pau comia solto, chegou o promotor de justiça da Comarca, Dr. Fernando de Souza Lima, levado até ali pelo irmão da dona da casa. Conversa vai, conversa vem, ficou ali estabelecida à separação. Não sei se aquilo seria um ato legal, o comportamento do promotor. Sei que esse lhes ameaçou de prendê-los caso voltassem a se juntar ou brigar.

Nego Sodré foi para São Paulo e Tereza foi para a companhia da mãe, Dona Joana Gorda, vizinha do Vicente Vilela. Eu achei ruim aquela separação, já que com isso, terminou a minha diversão de todas as tardes. Lembro-me, ainda, de ver a carroça do Serafim, virar a esquina levando os trastes e badulaques com a mudança, deixando-me um vazio egoísta.

Passou-se um ano de separação. O tempo, fenômeno incumbido de resolver certos problemas participou nesta questão... Um dia, Nego veio passear em Candeias e trouxe consigo a intenção de se juntar com a mulher e levá-la para São Paulo...

Novamente, conversa vai conversa vem e a turma do “deixa disso” conseguiu convencer Tereza a ir com o marido para São Paulo. Dois meses se passaram e Tereza aparece de volta. Meu pai, curioso procura saber o motivo da volta e tem dela uma resposta decisiva:

“O senhor é doido sói Zé! O nego rancou os dente e pois uma dentadura. De noite pega a mardita da dentadura e põe dentro dum copo dágua. Com aquela boca fedendo pinga, e murcha sem dente, vem querendo... querendo, quer dizer... Querendo me beijá... Ai eu não dou... Quer dizer eu não deixo... Dorme! Ronca igual um capado! Acorda de madrugada com sede e bebe a água do copo da dentadura... Teve um dia que eu quase gumitei em riba da cama...

Parece que dipois qui o home foi pá São Paulo ele viu o diabo. Ele arrumou umas vontade doida... Inventou de querer umas coisas contra a natureza... contra a riligião... coisa qui eu num tenho nem corage de falá... Umas coisa mais aturdida do mundo... Eu já num tinha sono... Na hora de ir pá cama eu pingava era de medo e de nojo... Eu passano por aquilo sói Zé todo dia com o istâme imbruiano... Tem base? Nem se eu fosse de ferro, pá guentá um trem desse!... Ai eu tive que cascá fora”.

Armando Melo de Castro -
Candeias MG Casos e Acasos

Um comentário:

SONIA MARIA DA SILVA disse...

Armando, ler suas crônicas tem se tornado um prazer pr mim, é como voltar no tempo, voltar na cidade onde nasci, com seus relatos tão claros e tão peculiares, me vejo criança de novo na Candeias que eu mantenho viva na minha memória, tenho matado minha saudade desta cidade lendo alguns de seus relatos, valeu....

Sonia Maria da Silva