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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

O DRAMA DE UM VIAJANTE.



Num dia desses, o açougueiro que me atende em domicílio me ligou e me disse que tinha chouriço. Com essa pandemia e o alto preço das carnes, os donos de açougues estão apavorados para vender os seus produtos e estão procurando os fregueses em suas casas. --- Eu lhe perguntei se estava fresquinho porque chouriço passado torna-se num alimento perigoso. Existem cidades, que a comercialização desse produto é até proibida. E o magarefe me responde com todas as letras que era um produto fresquinho, pois teria chegado naquele dia. 


Dizem que adorar é um tratamento destinado aos Deuses. Mas eu peço perdão ao mundo celestial para dizer que adoro chouriço. E diante da oferta, não pensei duas vezes e lhe encomendei uma boa porção e já fiquei imaginando o meu tira-gosto, que a bem da verdade, não seria tira-gosto e sim um rebate. Afinal, para quem gosta, um pedaço de chouriço e um gole da pinga João Cassiano é um casamento feliz no céu da boca e uma bela lua de mel no estômago. Mas tem que ser chouriço fresco, senão vira briga.

 

Na madrugada seguinte por volta das 3 horas da manhã despertei-me com um barulho de uma cachoeira dentro da minha barriga. Fiquei um pouco assustado. Da minha cama até ao banheiro deve ter menos de três metros. Eu que estou acostumado a me assentar na cama antes de ir ao banheiro, na costumeira visita que faço durante a noite, pareceu-me que fui levado pelas águas da cachoeira que parecia estar recebendo uma enchente. Adentrei-me no banheiro feito um helicóptero acidentado e me salvei, pois já cai sobre o vaso. Um segundo teria sido muito tempo para mim naquele momento.

 

Não tive tempo para pensar nada. Salvei-me numa barca furada em meio a uma tempestade. ---- Respirei fundo. --- Mas quando olhei dentro do vaso, lembrei-me do desgraçado do açougueiro, que me dissera que o chouriço estava fresquinho e que teria chegado naquele dia. Ter chegado naquele dia não seria prova de que estava fresco. Sei lá de onde teria vindo? Fiquei puto da vida. – Daí só imaginando se eu tivesse sujado a cama com aquele barro preto... Nossa! Minha mulher ia me matar. Se a cachorrinha daqui de casa que é tratada de filhinha da mamãe; tetequinha, tequinha,  e alimenta-se de forma balanceada, já andou tomando umas tapas no dia em que soltou o barro fora do seu tapete-banheiro? Não é bom nem pensar se ela acordasse levada por uma essência de sangue podre, ou coisas dos urubus!

 

Dai tomei um belo banho e pude vir para o computador com a intenção de escrever alguma coisa. Mas escrever o quê? A história que florescia a minha memória era só merda; mas falar sobre isso? Se bem que a palavra merda tem, às vezes, parecido um doce na boca de muita gente, mas trata-se de algo nojento e polissêmico usado na linguagem vulgar. Só de tratar-se de resíduos fecais, já traz uma conotação de insulto e pode até ser também uma expressão de desagrado.

 

Mas de repente bateu na minha cabeça a lembrança daquela crônica do famoso escritor Fernando Veríssimo, “UM DIA DE MERDA” quando ele se borrou todo no aeroporto enquanto aguardava o avião para Miami. Dai então, resolvi falar em merda e abrir o verbo. Tomei de uma das gavetas do armário das minhas memórias e bem lá no fundo encontrei essa passagem de quando eu fui cobrador de jardineira, no ano 1962. Nesse tempo eu pude conviver por mais de uma vez com esse tipo de drama quando um viajante pode estar sujeito.

 

Eu tinha, então, os meus 16 anos e era cobrador de uma jardineira que fazia a linha de Candeias a Oliveira. Saia de Candeias às 6 horas da manhã e estava de volta às 6 da tarde. O motorista era o Jesus Teixeira. E foi nesse tempo de minha vida que eu pude guardar coisas que até hoje fermentam o mosto das minhas lembranças. A jardineira levava passageiros com destino a Belo Horizonte e que faziam uma conexão em Oliveira.

 

Ananias Misael era um fazendeiro bastante conhecido em Candeias pela sua sovinice. Por causa de um real seria capaz de andar de gatão por toda a cidade. Era famoso pelo seu apego ao dinheiro. Dava a entender que o dinheiro era o seu deus. Apesar de ser sempre visto na casa de Deus. ---- Certo dia nós o tivemos como nosso passageiro, na ida e na volta até a cidade de Oliveira. Na ida ele divertiu os demais passageiros quando se sacou de um canivete, tirou a dentadura e começou a raspá-la enquanto ia comentando com o seu companheiro de poltrona:

 

---“Essa dentadura foi o Bonerge que fez pra mim bem baratinha dipois deu chorá no preço. Cobrô barato mais ela tá me crucificano. Ele falô cumigo que a hora que machucá é pá rapá. Tô veno que num vai sobra dentadura”...

 

Após esfarelar a dentadura ele a esfregou nas calças e a colocou na boca. E de quando em vez dava uma cuspida no piso da jardineira. --- Na volta, no outro dia, a coisa foi diferente. Quando estávamos mais ou menos no meio do caminho, ele olhou para mim e disse em voz alta:

 

--- “Cobradô, fala pu chofer dá uma paradinha porque eu tô precisando de dá uma “viajinha” com urgença”.

 

Eu, que era um menino bobo, inexperiente, ainda não entendia essas metáforas, fiquei sem saber o que realmente aquele senhor estava pretendendo, fazer uma “viajinha” com urgência? Se ele estava viajando? Que viagem seria essa? ---- O Padre José Albanez, então reitor do seminário de Oliveira, estava na jardineira e vendo o atropelo verbal em que eu me encontrava, resolveu me ajudar e disse-me: “Ele deve querer descer para fazer necessidades fisiológicas, disse”.

 

Ai então a coisa ficou do mesmo tamanho. Alias, ficou mais complicada. Eu jamais iria saber o que seria fazer necessidades fisiológicas. Isso para mim era palavra de igreja, de reza, de padre.

 

Mas, felizmente o João Resende, que também estava na jardineira e tinha um português mais claro disse-me em voz baixa: Ele está é apertado para dar uma cagadinha. --- Ai ele falou na minha língua ---- A jardineira que trafegava na antiga estrada do João Pinto parou e deu para os passageiros notarem que a cueca do Ananias já havia levado a pior. Ele desceu e embrenhou-se numa moita e não mais voltava. Ficou por lá um tempão e quando voltou veio chorando a perda:

 

Que merda sô, tive qui limpá as parte com a cueca”. Uma cueca boa sô; ainda ia longe, Pois me dero um diabo dum chouriço que divia tá perdido e eu intrei nele cum vontade. Churicinho iscumungado sô”. 

 

Agora os amigos podem imaginem como foi o resto da viagem?

 

 Armando Melo de Castroasos.

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