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sábado, 18 de junho de 2022

O TESOUREIRO


 Da minha meninice, vivida na Rua Coronel João Afonso Lamounier, em Candeias, eu trago na lembrança a família do Sr. Joaquim Guimarães, mais conhecido por Quinca do Martimiano. Suponho que deveria ser Quinca do Maximiano, mas antigamente era assim mesmo. As pessoas viciavam os nomes dos outros. --- Quinca era casado com Dona Marica da Melada, já comentada aqui em outros textos; tinham uma filha única, a Maria das Graças. --- Maria das Graças quase todo domingo ia com uma roupa diferente ou nova à missa, num tempo em que a grande parte das pessoas tinham uma roupa exclusiva para ver Deus; tinha velocípede comprado em Campo Belo; vestiu-se de anjo no mês de Maria, com as asas mais lindas e mais caras. Enfim, era a menina mais rica da rua. Era impossível, não sentir uma “invejinha” dela.
Vizinhos de frente. E como Dona Marica falava muito alto, a gente conseguia escutar tudo que lá se passava, afinal ela estava sempre na janela ou na sala de sua casa, contando alguma vantagem. E eu tinha os meus ouvidos muito afiados e uma mente muito curiosa, e um espírito de repórter; apesar de ser um menino muito acanhado. Eu gostava de ficar apreciando a mexida diária de Dona Marica
Os traços de sua personalidade eram confusos. Às vezes, parecia que em tudo ele era meio. Meio careca; meio surdo; meio calado; meio ignorante, parecia meio bobo; (só parecia) ---- Marica era uma pessoa singular em termos de desajeito. Falava alto, estourada por qualquer coisinha e era dona de uma ingresia danada. Mandava no marido e ele cortava um doze com ela. --- Sobrinha do Sr. Erasto de Barros, vizinho também; eles tinham o comportamento bastante parecidos, Se pisassem nos seus calos, ou fossem contrariados era como se mexesse nunca caixa de marimbondos.
Ela se esnobava por passar bem de boca e viver na fartura. Na sua porta era ouvido o chamar do Nené da Zenóbia “Ó o padeiro!” ---- O verdureiro Zé Moraes lhe trazia verduras especiais e mais bem escolhidas. Se as verduras tivessem uma pequena larva ou uma minhoquinha qualquer, já era motivo para o falatório. Eram eles os vizinhos mais próximos a possuírem rádio que ficava ligado o dia inteiro no ultimo furo. A minha mãe decorava, músicas, o meu pai ouvia o Repórter Esso, Um programa que ela não perdia era dos Batutas do Sertão, Torres, Florêncio e Castelinho.
Comia carne todos os dias, pois fazia a tal carne de lata, que no caso de não ter geladeira, e não ter carne fresca todos os dias, naquele tempo era uma solução. --- Nos dias de matança no matadouro, O Lico da Sinhana, o responsável pelo abate dos animais, já levava a sua encomenda espetada num gancho, direto para ela, sem que ela precisasse de ir ao açougue. Esse privilégio era levado em conta porque o marido era importante na prefeitura. A gente imaginava que os funcionários da prefeitura eram todos ricos porque ganhavam muito dinheiro para trabalhar lá. O povo nesse tempo entendia muito pouco e funcionário público era como um Deus.
O povo da nossa rua assistia de camarote a riqueza em que vivia o Quinca Martimiano, sendo que ele antes era um latoeiro, quando existiam uns quatro artesãos do ramo. Era uma profissão para poder levar, às gatas, a vida de pobre. Portanto, com a fundação do município em 1938, Quinca veio a ser beneficiado com um emprego na prefeitura, onde passou a exercer o cargo de tesoureiro do município.
Comer bem ou ostentar uma vida de fartura, já não era apenas o objetivo do Quinca. Sua esposa, estava sempre encrencando com o vizinho da casa cima de propriedade dos irmãos do Juca do Nico, que moravam na roça, mas sempre vinham passar uns dias na cidade. --- Um dos irmãos tinha uma deficiência mental e quando surtava vinha para a cidade. Ai então o pau comia entre ele e Dona Marica. --- Quinca fez uma excelente proposta e comprou esta casa, no cobre vivo. Afinal Dona Marica riscava e ele cortava. A gente nunca ouvia a voz dele, falava baixo, era silencioso, só era visto na prefeitura, ou indo e voltando para casa. À vezes era visto na igreja ao lado de seu irmão Chico.
Depois de algum tempo Quinca comprou um sobradinho construído pelo meu tio Wantuil Delminda, ao lado da casa do Sr. Ermino, na Rua João Caetano de Faria com a Praça Antônio Furtado. E transferiu a sua residência para lá, vindo a alugar as duas casas já existentes. Dona Marica se esnobava porque agora não teria vizinhos chatos para aborrecê-la com o cheiro do seu galinheiro.
Mas afinal, o salário de um tesoureiro da prefeitura dava para tudo isso? Afinal os demais funcionários da instituição eram pessoas humildes e simples. Eram em número de três ou quatro de não me engano... As pessoas viam, e às vezes tiravam conclusões erradas. Afinal ele era o tesoureiro, podia ser que ganhava bem mais. Os prefeitos eram ricos, não era possível fazer comparação.
Passaram-se 20 anos.
No ano de 1958 foi um ano de eleições municipais. O prefeito José Pinto de Resende passaria a prefeitura para o Sr. Raymundo Bernardino de Sena, O Raymundo do Mariano, o prefeito eleito para 1959 x 1963 --- Zé Pinto teria feito uma administração louvável. E Raymundo vinha com a mesma intenção de dar continuidade ao trabalho que mudaria todo o visual do município de Candeias. Ruas calçadas, praças ajardinadas e tudo mais que faz hoje de nossa cidade uma linda cidade.
E uma das primeiras providências do prefeito Raymundo foi fazer uma sindicância e apurar o desfalque que havia na prefeitura, que já vinha há anos, sendo promovido pelo Sr. Joaquim Guimarães, o tesoureiro da prefeitura. Mas parecia que a benevolência indevida dos prefeitos anteriores não apuraram o comportamento do Sr. Quinca, talvez por saber o diabo que iria virar a sua esposa. As pragas que iriam receber, os nomes feios que iriam tomar. Mas Raymundo do Mariano, um homem integro, consciente dos seus deveres; um cidadão cônscio do dever que assumia com o patrimônio do povo que o elegeu não se intimidou e num gesto de fiel cumpridor de seus deveres, promoveu a demissão do Tesoureiro que vinha há anos enfiando a mão no dinheiro público. E o fez sem faltar com o respeito com o meliante.
Os apuradores do processo de demissão correram a cidade indo de casa em casa, pedindo os recibos do pagamento cobrado pelos impostos. Lembro-me como se fosse hoje, quando chegaram a minha casa e minha mãe ficou procurando esse recibo do pagamento do imposto numa gaveta. O impresso do recibo não era destinado ao pagamento de imposto predial ou outras taxas e sim como se fosse pagamento feito por obrigações com o Matadouro Municipal.
O Quinca foi demitido. Dona Marica ficou meio louca. Chorava, falava alto, rogava praga no prefeito Raymundo... Meu Deus! Como rogava praga no prefeito Raymundo... Dizia que ele haveria de morrer com a boca cheia... (Imagine)
Mas parece que as pragas pegaram foi na família dela. Ela terminou os seus dias em decadência mental. O Quinca ficava o dia todo batendo o seu martelinho recordando o seu tempo de latoeiro, apenas para se destrair, conforme dizia a sua filha. Já estávamos na era da matéria plástica e ninguém queria canecão e gamela de lata. Ele dava isso de graça para as pessoas necessitadas. Não demorou, foi chamado por São Pedro. Dona Marica, também foi atrás. E Maria das Graças casou-se com um rapaz que logo depois teria cometido um crime e estava preso. Ela ainda conseguiu formar-se professora. Era uma menina muito boa. Faleceu ainda bem jovem. E o seu marido oriundo da cidade de Cristais, foi quem herdou o seu patrimônio.
E as pragas que ela rogou parece que voltaram-se todas para ela. Quinca voltou a ser latoeiro, uma profissão superada, afinal estávamos já na era da matéria plástica. Maria das Graças a filha, dizia que o pai fazia aquilo apenas para se distrair, dava de graça.
Anos depois, eu me encontrei com o Sr. Raymundo do Mariano, ex prefeito, nas proximidades do cinema, ele já bem idoso, e eu lhe perguntei:
--- O senhor não tinha medo das pragas da Dona Marica não Sr. Raymundo?
E ele numa risadinha sorrateira me respondeu:
--Você se lembra disso menino!... Coitada da Marica!
Armando Melo de Castro.

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