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quarta-feira, 22 de junho de 2022

A HISTÓRIA DE UMA CANDEENSE.


N
a década de 50, em Candeias, moravam duas famílias vizinhas de porta, no final da Rua Pedro Vieira de Azevedo. A família de minha tia Elisa, casada com o meu tio João Delminda, e a família de dona Zulmira. Comumente, a gente via a tia Elisa na janela e dona Zulmira do lado de fora e as duas batendo aquele papo amigo e descontraído, na maioria das vezes, coisas de suas famílias. Eu estava sempre ali por perto porque meu primo, Vicente, era o meu melhor amigo de infância. Éramos como dois irmãos e, naquele tempo, tanto eu quanto ele, só tínhamos irmãs.

 Tia Elisa era uma boa ouvinte e como dona Zulmira era uma boa falante, estava sempre contando algo de sua vida para o conhecimento de tia Elisa. Eu era aquele menino bobo, calado, entretanto, estava sempre gravando a conversa dos outros. Achava engraçada a fala de dona Zulmira pois falava umas palavras que eram, até então, desconhecidas para mim como por exemplo: jinela, cacunda, maise, dispois, adonde, entre outras, que eram termos, normalmente, advindos da zona rural. Com o tempo, acabei aprendendo aquele linguajar.

 Dona Zulmira era uma mulher de uns 60 anos, mais ou menos, cabelos grisalhos, um rosto bem feito e tinha um corpo bem cuidado para uma mulher de meia idade. Ela tinha apenas uma filha, a Ana Maria. Até hoje, não sei qual era a sua renda, o seu ganha pão. Parece-me que vivia do aluguel de um pedaço de terra que o seu pai lhe teria deixado.

 Ana Maria era uma moça muito bonita. Um rosto harmonioso, olhos avelã, uma boca linda e um sorriso que eu como menino, imaginando-me adulto, teria ficado apaixonado. Naquela época, não era comum as mulheres usarem calças compridas, portanto, ela estava sempre trajada de saia e anágua, mostrando as mais lindas pernas do mundo. Trabalhava de empregada doméstica na residência da sua ex professora, dona Ninita Alvarenga, que tinha por ela um enorme apreço. Ana Maria já havia concluído o curso primário, porém, continuava aprendendo as boas maneiras com a patroa que era uma mulher extremamente requintada. Eu suponho que ela tivesse por volta de uns 17 anos de idade e tinha, realmente, uma beleza de parar o comércio como se dizia antigamente.

 O destino parece que se incumbiu de mudar a rota da vida de Ana Maria. O sonho dela sempre foi ir para São Paulo, pois na década de 50, em Candeias, ir para a capital paulista, era, para todos, sinônimo de prosperidade na vida. E Ana Maria parece que chegou a Candeias por um endereço errado... Além de muito bonita era também inteligente, comunicativa e agradável. Não me recordo ao certo, mas, alguém da família Bonaccorsi acabou levando-a para São Paulo a fim de trabalhar junto a membros dessa tradicional família por lá e iria ganhar muito mais dinheiro. Dona Ninita, no auge de seu discernimento, vendo que as condições em que a proposta fora feita à moça lhe seria muito favorável, acabou por aceitar dispensá-la e assim abrir-lhe o caminho para seguir um novo rumo.

 Dona Zulmira quase morreu de tristeza quando sua menina foi para São Paulo, imaginando a imensa saudade que, com toda a certeza, sentiria da querida filha. Chorava como se a mesma tivesse morrido. Ela sempre exclamava:

 ---- Pois é, dona Ilisa, a gente cria uma fia com tanto trabaio pá dispois dá ela pu zoto... Vai vê qui ela nunca mais vai morá cumigo.

 Minha tia, que era uma pessoa muito ponderada, tentava consolá-la a todo custo, contudo, era inútil. O tempo foi passando e, alguns anos depois, sua querida filha apareceu! A comunicação, naquele tempo, era muito precária e difícil, e, constantemente, as surpresas eram comuns. Em uma tarde fria de uma quinta-feira, quando o silêncio tomava conta do coração de dona Zulmira, batem a sua porta.

 Que felicidade! Era Ana Maria toda linda, muito mais bonita do que antes, bem vestida, bem falante, trazendo presentes e lhe apresentando, como namorado, um jovem rapaz que lhe acompanhava. Era, igualmente, muito simpático e atraente! E assim, logo foi dito que aquela visita era feita visando formalizar o pedido de casamento. Vieram, portanto, a fim de ficarem noivos. Dona Zulmira quase morreu de contentamento. Ela ria e chorava ao mesmo tempo...

 Logo se viu que aquele rapaz era bem aquinhoado, haja vista ter um belo carrão para época, um caro Aero Wyllys, novinho da cor de vinho.

 Permaneceram, por cera de três dias, na cidade e partiram de volta já na condição de noivos. Dona Zulmira fez apenas uma exigência: que o casamento fosse celebrado em Candeias e pelo Monsenhor Castro. E assim aconteceu... As núpcias ocorreram seis meses após o noivado. Não houve festa e nem comes e bebes. Os parentes do noivo e o noivo ficaram hospedados no Hotel da Geni (Novo Hotel) e, no mesmo dia, os noivos seguiram para a lua de mel e os parentes, do mesmo modo, retornaram para São Paulo.

 Um tempo depois, o casal volta a Candeias todo feliz. Dona Zulmira, novamente, leva aquele susto. Desta vez, vieram buscá-la para levá-la a fim de conhecer a casa da família além de fazer companhia para Ana Maria que já se encontrava grávida. Como Dona Zulmira não tinha marido, não houve qualquer dificuldade, nenhum transtorno. No outro dia, ela entrava toda alegre e contente no Aero Wyllys rumo a São Paulo, onde iria participar da chegada do seu netinho.

 E com o tempo, aquilo virou uma rotina: eles vinham buscá-la; ela ficava por lá algum tempo; voltava, ficava em Candeias um período e, depois, ia novamente para São Paulo. A última vez que a vi conversando com a minha tia, já havia passado muito tempo que não a via em Candeias. E o cenário era o mesmo: minha tia na janela e ela do lado de fora contando as coisas lá de São Paulo.

Acontece que ela estava muito mudada, tanto no jeito de falar quanto no seu jeito de vestir! Estava usando maquiagem e um batom vermelho igual sangue, coisa que ela não usava antes. Estava toda chique, vestindo uma blusa sob um sobretudo preto, calça preta e sapatos vermelhos. Vê-la de calça comprida foi uma surpresa para a minha tia que depois, discretamente, me perguntou:

 --- Você viu a calça cumprida da Dona Zulmira, Armando? E deu aquela risadinha sorrateira, própria de tia Elisa.

 Dona Zulmira estava agora toda empolgada no seu jeito de comentar:

 --- Êh, dona Elizia, (não se sabe explicar, mas, ela mudou o nome de minha tia) dessa veiz eu fiquei lá em São Paulo um tempão, viu!. Foi mais de quatro meis. Eu falava que pricisava di vimbora e meu genro falava assim: a siôra num vai dijeininum! E perguntava pra mim se eu tava massatisfeita e eu falava: não, meu fio, é qui já tô tempdimais!! Óia, dona Elizia, vô falá uma coisa pra siôra, eu nunca tive uma vida tão boa iguale lá, tá!.A siôra credita que ele feiz uma casa no bairro da casa verde, um casão, tem até lugá de nada..

 ---- E a senhora nadou lá, dona Zulmira? Perguntou, tia Elisa.

 ---- Que é isso, dona Elizia! Eu num tinha corage não, sô! Intrá de maiô com a anca tudo de fora? Nem vê! A siôra tinha que vê, dona Elízia, uma casa que é um casão. Se fais frio, tem vendo quente; se fais calor, tem vento frio. Um trem bão danado.

 --- E a família do genro da senhora, Dona Zulmira? Quis saber, tia Elisa.

 --- Óia, pai ele num tem não. Ele tem é duas irmã mais eu vi elas muito pôco. Uma era muito boazinha, mas, a outra era assim meio dengosa. A mãe dele vai muito lá e gosta muito da Aninha. Eu gostei dela tamém e da empregada da Aninha, uma baianinha que fala do jeito isturde. E ela mais a mãe do meu genro ficava rino quando eu falava umas coisa que elas num intindia. Elas ria de mim, assim de brincadeira, quando eu falava bota fejão no fogo; ela falava era: vou por fejão pá cozinhá. Ela num fala catá o fejão, dona Elizia! Ela dizia qui ia era iscoiê!. E nóis divertia quessas conversas, viu!. A mãe do meu genro falô que nóis minero fala diferente e que é muito ingraçado. Ela falava que a Aninha num me puxô pá falá não.

 --- E o genro da senhora, dona Zulmira, trabaia em quê? Continuou indagando a tia Elisa.

 --- Ele tem uma fábica de armaro imbutido. Ganha um dinheirão cuisso. A fábica era do pai dele e dispois ficô pra ele. A siôra vê nê: minha fia tirô na loteria.

 --- Então, a senhora está feliz demais, Dona Zulmira? concluiu, tia Elisa.

 --- Eu tô é nadano de alegria! Graças a Deus!

 E assim, essa foi a última vez que eu vi a dona Zulmira.

 Já havia tempo que ela andava sumida. Certo dia, a filha dela apareceu e abriu a casa. Um caminhão estava levando todos os pertences dela que seriam doados para parentes da família, conforme contou Ana Maria a tia Elisa ao lhe comunicar que sua mãe, dona Zulmira, teria morrido ao atravessar uma rua, descuidadamente, em São Paulo, sendo atropelada por um taxi.

 Foi desse modo que tia Elisa teve conhecimento do fim que o destino deu a sua estimada amiga de outrora, amizade esta que marcou muito minha infância como a primeira grande relação vivida por duas vizinhas. 

 Armando Melo de Castro.

sábado, 18 de junho de 2022

O TESOUREIRO


 Da minha meninice, vivida na Rua Coronel João Afonso Lamounier, em Candeias, eu trago na lembrança a família do Sr. Joaquim Guimarães, mais conhecido por Quinca do Martimiano. Suponho que deveria ser Quinca do Maximiano, mas antigamente era assim mesmo. As pessoas viciavam os nomes dos outros. --- Quinca era casado com Dona Marica da Melada, já comentada aqui em outros textos; tinham uma filha única, a Maria das Graças. --- Maria das Graças quase todo domingo ia com uma roupa diferente ou nova à missa, num tempo em que a grande parte das pessoas tinham uma roupa exclusiva para ver Deus; tinha velocípede comprado em Campo Belo; vestiu-se de anjo no mês de Maria, com as asas mais lindas e mais caras. Enfim, era a menina mais rica da rua. Era impossível, não sentir uma “invejinha” dela.
Vizinhos de frente. E como Dona Marica falava muito alto, a gente conseguia escutar tudo que lá se passava, afinal ela estava sempre na janela ou na sala de sua casa, contando alguma vantagem. E eu tinha os meus ouvidos muito afiados e uma mente muito curiosa, e um espírito de repórter; apesar de ser um menino muito acanhado. Eu gostava de ficar apreciando a mexida diária de Dona Marica
Os traços de sua personalidade eram confusos. Às vezes, parecia que em tudo ele era meio. Meio careca; meio surdo; meio calado; meio ignorante, parecia meio bobo; (só parecia) ---- Marica era uma pessoa singular em termos de desajeito. Falava alto, estourada por qualquer coisinha e era dona de uma ingresia danada. Mandava no marido e ele cortava um doze com ela. --- Sobrinha do Sr. Erasto de Barros, vizinho também; eles tinham o comportamento bastante parecidos, Se pisassem nos seus calos, ou fossem contrariados era como se mexesse nunca caixa de marimbondos.
Ela se esnobava por passar bem de boca e viver na fartura. Na sua porta era ouvido o chamar do Nené da Zenóbia “Ó o padeiro!” ---- O verdureiro Zé Moraes lhe trazia verduras especiais e mais bem escolhidas. Se as verduras tivessem uma pequena larva ou uma minhoquinha qualquer, já era motivo para o falatório. Eram eles os vizinhos mais próximos a possuírem rádio que ficava ligado o dia inteiro no ultimo furo. A minha mãe decorava, músicas, o meu pai ouvia o Repórter Esso, Um programa que ela não perdia era dos Batutas do Sertão, Torres, Florêncio e Castelinho.
Comia carne todos os dias, pois fazia a tal carne de lata, que no caso de não ter geladeira, e não ter carne fresca todos os dias, naquele tempo era uma solução. --- Nos dias de matança no matadouro, O Lico da Sinhana, o responsável pelo abate dos animais, já levava a sua encomenda espetada num gancho, direto para ela, sem que ela precisasse de ir ao açougue. Esse privilégio era levado em conta porque o marido era importante na prefeitura. A gente imaginava que os funcionários da prefeitura eram todos ricos porque ganhavam muito dinheiro para trabalhar lá. O povo nesse tempo entendia muito pouco e funcionário público era como um Deus.
O povo da nossa rua assistia de camarote a riqueza em que vivia o Quinca Martimiano, sendo que ele antes era um latoeiro, quando existiam uns quatro artesãos do ramo. Era uma profissão para poder levar, às gatas, a vida de pobre. Portanto, com a fundação do município em 1938, Quinca veio a ser beneficiado com um emprego na prefeitura, onde passou a exercer o cargo de tesoureiro do município.
Comer bem ou ostentar uma vida de fartura, já não era apenas o objetivo do Quinca. Sua esposa, estava sempre encrencando com o vizinho da casa cima de propriedade dos irmãos do Juca do Nico, que moravam na roça, mas sempre vinham passar uns dias na cidade. --- Um dos irmãos tinha uma deficiência mental e quando surtava vinha para a cidade. Ai então o pau comia entre ele e Dona Marica. --- Quinca fez uma excelente proposta e comprou esta casa, no cobre vivo. Afinal Dona Marica riscava e ele cortava. A gente nunca ouvia a voz dele, falava baixo, era silencioso, só era visto na prefeitura, ou indo e voltando para casa. À vezes era visto na igreja ao lado de seu irmão Chico.
Depois de algum tempo Quinca comprou um sobradinho construído pelo meu tio Wantuil Delminda, ao lado da casa do Sr. Ermino, na Rua João Caetano de Faria com a Praça Antônio Furtado. E transferiu a sua residência para lá, vindo a alugar as duas casas já existentes. Dona Marica se esnobava porque agora não teria vizinhos chatos para aborrecê-la com o cheiro do seu galinheiro.
Mas afinal, o salário de um tesoureiro da prefeitura dava para tudo isso? Afinal os demais funcionários da instituição eram pessoas humildes e simples. Eram em número de três ou quatro de não me engano... As pessoas viam, e às vezes tiravam conclusões erradas. Afinal ele era o tesoureiro, podia ser que ganhava bem mais. Os prefeitos eram ricos, não era possível fazer comparação.
Passaram-se 20 anos.
No ano de 1958 foi um ano de eleições municipais. O prefeito José Pinto de Resende passaria a prefeitura para o Sr. Raymundo Bernardino de Sena, O Raymundo do Mariano, o prefeito eleito para 1959 x 1963 --- Zé Pinto teria feito uma administração louvável. E Raymundo vinha com a mesma intenção de dar continuidade ao trabalho que mudaria todo o visual do município de Candeias. Ruas calçadas, praças ajardinadas e tudo mais que faz hoje de nossa cidade uma linda cidade.
E uma das primeiras providências do prefeito Raymundo foi fazer uma sindicância e apurar o desfalque que havia na prefeitura, que já vinha há anos, sendo promovido pelo Sr. Joaquim Guimarães, o tesoureiro da prefeitura. Mas parecia que a benevolência indevida dos prefeitos anteriores não apuraram o comportamento do Sr. Quinca, talvez por saber o diabo que iria virar a sua esposa. As pragas que iriam receber, os nomes feios que iriam tomar. Mas Raymundo do Mariano, um homem integro, consciente dos seus deveres; um cidadão cônscio do dever que assumia com o patrimônio do povo que o elegeu não se intimidou e num gesto de fiel cumpridor de seus deveres, promoveu a demissão do Tesoureiro que vinha há anos enfiando a mão no dinheiro público. E o fez sem faltar com o respeito com o meliante.
Os apuradores do processo de demissão correram a cidade indo de casa em casa, pedindo os recibos do pagamento cobrado pelos impostos. Lembro-me como se fosse hoje, quando chegaram a minha casa e minha mãe ficou procurando esse recibo do pagamento do imposto numa gaveta. O impresso do recibo não era destinado ao pagamento de imposto predial ou outras taxas e sim como se fosse pagamento feito por obrigações com o Matadouro Municipal.
O Quinca foi demitido. Dona Marica ficou meio louca. Chorava, falava alto, rogava praga no prefeito Raymundo... Meu Deus! Como rogava praga no prefeito Raymundo... Dizia que ele haveria de morrer com a boca cheia... (Imagine)
Mas parece que as pragas pegaram foi na família dela. Ela terminou os seus dias em decadência mental. O Quinca ficava o dia todo batendo o seu martelinho recordando o seu tempo de latoeiro, apenas para se destrair, conforme dizia a sua filha. Já estávamos na era da matéria plástica e ninguém queria canecão e gamela de lata. Ele dava isso de graça para as pessoas necessitadas. Não demorou, foi chamado por São Pedro. Dona Marica, também foi atrás. E Maria das Graças casou-se com um rapaz que logo depois teria cometido um crime e estava preso. Ela ainda conseguiu formar-se professora. Era uma menina muito boa. Faleceu ainda bem jovem. E o seu marido oriundo da cidade de Cristais, foi quem herdou o seu patrimônio.
E as pragas que ela rogou parece que voltaram-se todas para ela. Quinca voltou a ser latoeiro, uma profissão superada, afinal estávamos já na era da matéria plástica. Maria das Graças a filha, dizia que o pai fazia aquilo apenas para se distrair, dava de graça.
Anos depois, eu me encontrei com o Sr. Raymundo do Mariano, ex prefeito, nas proximidades do cinema, ele já bem idoso, e eu lhe perguntei:
--- O senhor não tinha medo das pragas da Dona Marica não Sr. Raymundo?
E ele numa risadinha sorrateira me respondeu:
--Você se lembra disso menino!... Coitada da Marica!
Armando Melo de Castro.