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domingo, 15 de outubro de 2017

LICA DO JOÃO PASSATEMPO.


---Ouvi no noticiário que o gás de cozinha poderá ter um aumento. --- E eu logo pensei, com essa pandemia, a situação financeira do povo precária como está  não seria bem vindo nenhum tipo de aumento, principalmente desse produto que se trata de algo de necessidade básica. ---  Mas enfim, fazer o quê? Afinal quem mora em apartamento assim como eu, não tem alternativas... É pagar o preço que vier ou fechar a cozinha. Contudo, acredito que isso não será o proposito de ninguém.

 ---Segundo as pesquisas, nesse momento de crise uma revenda de gás é um dos negócios mais rentáveis. Isso porque o gás tem sido vital para a economia e é um produto de venda e giro rápidos, pois não fica estocado por muito tempo. Além disso, não tem prazo de validade; e trata-se de um produto de necessidade básica. Segundo as estatísticas o gás de cozinha tem uma penetração muito maior que a energia elétrica, a água encanada e a coleta de esgoto no país e está presente em 98% nas casas dos brasileiros independente da região e da renda da população.

---Mas falando nisso, fermenta nas dornas do meu cérebro um fato guardado bem nos fundos da minha memória desde a década de 50, quando a minha idade girava em torno dos dez anos.

 ---Em Candeias não havia gás de cozinha. As pessoas usavam fogão a lenha; ou pó de serra fornecido gratuitamente pelos proprietários de marcenarias, e/ou casca de café conseguida nas máquinas beneficiadoras; também de graça.

 ---A lenha era vendida aos metros cúbicos pelos fazendeiros. Naquele tempo não havia esse rigor das leis e nem da polícia florestal sobre o desmatamento. As pessoas mais humildes ou sem disponibilidade financeira para comprar um metro cubico de lenha, compravam feixes, fornecidos pelas lenheiras que tinham essa fonte como complemento de renda. 

 ---Elas transitavam livremente pelos matos na busca dos galhos secos; faziam os feixes já encomendados pelos compradores que economizavam ao máximo aquele combustível caro para quem comprava, e barato para quem vendia. ----- Comumente as lenheiras eram vistas pelas estradas com enormes feixes de lenha sobre as cabeças amparadas por rodilhas. Elas se levantavam cedo e iam pelos matos a procura de lenha, num trabalho árduo, que resultava então da venda por CR5,00 (cruzeiros) para uma ajuda nas despesas da casa.

 --Mulheres com filhos pequenos, onde os maiores ficavam tomando conta dos menores enquanto a mãe buscava lenha. Era uma vida miserável num tempo de muita pobreza.

 ---Apesar de pertencer a uma família proletária eu tinha a minha infância feliz. Tinha pai e mãe que viviam em prol da família e a gente tinha o básico necessário para a sobrevivência. Parecia-me, portanto, sentir que era o povo daquele tempo mais feliz, mesmo estando com as suas roupas remendadas; pés no chão; bolsos sem dinheiro; a cabeça de palha no bolso da bunda; o cigarro de fumo de rolo; bem como o toco do cigarro agarrado na orelha... Isso era como o retrato da pobreza, bastante comum. ----- Dava até para pensar que fumar era o único prazer que o pobre sentia -----. A tranquilidade para fazer o cigarro e a paciência para acendê-lo com aquela binga rústica seria uma mostra de um comportamento inexistente nos dias atuais.

 ---Não havia tantos produtos industrializados e nem empacotados, tudo era a granel. Comprava-se 250 gramas de banha, meio quilo de arroz e meio de feijão. Nem tudo era vendido por quilos, ou seja, as pessoas compravam produtos até para fazer apenas uma refeição. Muitos trabalhavam a parte da manhã para comer à tarde. A vida do pobre era difícil, muito difícil.

 ---E hoje, ao ter a notícia de que o botijão de gás vai ter aumento de preço, eu dei uma olhada no retrovisor da minha vida e vi a Rua Coronel João Afonso Lamounier, em Candeias, rua onde nasci, e palco da minha infância.

 ---Lembro-me, então, de uma mulher pequena, mulata, conhecida como LICA DO JOÃO PASSATEMPO e que tinha como prática frequente ir todos os dias aos matos buscar um feixe de lenha para vender pelo valor de C$5,00 (cruzeiros.) era o dinheiro da época, o que numa conversão para o real não seria mais do que R$ 12,00, por uma viagem aos matos durante horas e horas para encontrar um feixe de lenha.

 ---Certo dia o meu Tio, João Delminda, pediu-me para ir até a casa de Lica, que ficava na mesma rua, encomenda-la um feixe de lenha. ----- E ela educadamente, disse-me: “Armando, avise ao seu tio que nós, as lenheiras, passamos o feixe para 6 contos, a coisa tá preta, subiu tudo, o metro já subiu duas vezes; estamos indo longe pra achar lenha e esse foi o motivo de nós também ter que aumentar um pouquinho”.

 ---Avisei-o, mas meu tio não disse nada. – Dois dias depois Lica chega à casa do meu tio, próxima a minha, com o feixe de lenha. Eu a observei enquanto aguardava o meu tio com o dinheiro para paga-la: molhada de suor, aspecto de cansaço, segurando as cordas de amarrar o feixe e a rodilha, suas ferramentas de trabalho, tomando um copo d’água como se estivesse morrendo de sede, e dizendo a minha tia que ainda iria fazer almoço, quando chega o meu tio com o dinheiro e lhe disse: “Eu acho um absurdo um feixe de lenha por 6 contos Lica”. Já era caro por 5, agora 6... Isso é falta de consciência!

 ---Lica não disse sequer uma palavra. Deu apenas um triste olhar para os lados numa expressão de quem dizia: “como viver é difícil!”.

 ---E eu naquele momento quisera falar algo em favor de Lica. Mas sendo um menino ainda no verdor dos anos, eu tinha o direito apenas de pensar e nunca de falar. Pensei. E estou pensando até hoje. 


---Portanto, Dona Lica do Sr. João Passatempo, eu queria que soubesse que naquele momento eu me engasguei com as palavras do meu tio, e agora, eu desato o nó de minha garganta lembrando-me do seu silêncio, talvez, o silêncio de um grito... de um grito sem socorro!

 --Onde quer que esteja, receba o meu beijo e o meu carinho.Armando Melo de Castro.

Candeias MG Casos e Acasos

 

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