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terça-feira, 2 de agosto de 2011

UM CHUMBO NA ASA


Wanderley Alvarenga

Há certos momentos em que somos levados a um passado distante. É como se olhássemos de repente no retrovisor de nossas vidas e lá estivesse à mostra algo quase esquecido. ----- Basta, às vezes, um pequeno fato para que se abram as cortinas de nossa mente e nos faça presente o que teria nos marcados na vida.

Ontem, quando eu saboreava um tutu de feijão daqueles para mineiro nenhum botar defeito, veio à tona de minha memória o nome de um grande amigo já falecido: Wanderley Alvarenga, conhecido por Lei Careta. ----- E naquela sintonia entre o cérebro, a boca e o estômago, eu puxo a ponta de uma meada vinda de um estímulo neurônico me fornecendo uma frequência, o que me fez experimentar um reflexo engastalhado no meu cérebro mesclado de tutu de feijão.  

 Ley Careta tinha um barzinho junto ao cinema, e no fim da noite, quando ia fechar o estabelecimento, pegava a sua marmita e fazia sob um pequeno fogareiro aquela porção de tutu, do qual me era dado algumas colheradas para tirar o gosto de uma cachaça João Marques, a pinga famosa em Candeias naquele tempo quando ainda não existia a João Cassiano.

Eu, na flor da minha juventude, diante daquelas colheradas do saboroso tutu de feijão do Ley, mais a dose de cachaça do João Marques, por pouco não sentia um orgasmo alimentar à moda, Gabi Jones, aquela americana que sentia um orgasmo quando comia os seus alimentos preferidos.

Tínhamos uma diferença de idade de quase dez anos. Portanto, fiz dele um professor na minha escola da vida. Não teria sido um bom professor se eu tivesse sido um aluno exemplar. Infelizmente o meu grande amigo Ley exagerava na bebida e não relacionava bem com a família. Tinha sérios problemas psicológicos e o final de sua vida foi dramático. Mas era um amigo que eu prezava muito e o entendia. Eu sempre fui para ele uma caixa de desabafo. Não sei porque ele confiava tanto em mim. ---- Éramos tão amigos que ele me convidou para ser seu compadre antes mesmo de se casar: “Um dia Armando, você será o padrinho do meu primogênito”. E assim fui quando nasceu o seu primeiro filho o Cristian Alvarenga. E ele nunca mais me chamou de Armando e sim de compadre.

De repente, numa evocação virtual sinto-me tomado por um transe mediúnico e volto ao passado, bem no início da nossa amizade, quando eu entrava na adolescência e o meu amigo Ley já era um rapaz adulto.
Eu um meninão inocente, muito mais bobo do que inocente. Época em que entrava para a escola do mundo e recebia algumas aulas do Ley. E numa mexida no retrovisor da minha vida vejo, lá atrás, eu e o meu amigo descendo a Avenida 17 de dezembro:

---Armando, amanhã eu vou a Campo Belo. Vamos?

---Você vai de quê?

---De carona no caminhão leiteiro do Renato do Zico.

 (Nesse tempo não havia ônibus para Campo Belo, era o trem em apenas um horário e uma jardineira, somente na parte da tarde. O caminhão leiteiro era um transporte para quem ia até Campo Belo na parte da manhã. Caso contrário tinha que dormir lá.)

 ---Vai fazer o que lá, nessa poeirada toda?

 (Ainda não havia estrada asfaltada para Campo Belo nesse tempo, era a estradinha passando pelos arrudas)

 ---Vou consultar.

---Consultar? Você está doente?

---Bem! Estou e não estou!

--- Se não está porque vai consultar?

---Eu estou com um pequeno problema.

---Se é pequeno, vai ao Posto daqui...

---Não, não posso. Eu tenho vergonha do Dr. Zoroastro.

---Vergonha de quê?

---É um negócio meio complicado.

---Complicado como?

---Eu peguei um negócio aí.

---Negócio? Que negócio?

---Olha, Armando, eu vou contar, mas não espalha tá?

---Tudo bem! Mas o que é?

---Tomei um chumbo na asa?

---Chumbo na asa? O que é isso?

---Doença!

---Você disse que não está doente!

---Bem quero dizer... Mais ou menos...

---Eu não estou entendendo. Você está ou não está doente?

---Estou com um incômodo. Bem, acaba sendo doença.

---Mas que diabo de doença é essa que é e não é?

---Doença de rua.

---Doença de rua!? E o que é doença de rua?

---Blenorragia.

---Nunca vi falar nisso?

---É o mesmo que gonorreia.

---Gonorreia? E o que é isso?

---Doença de rua...

---Mas que diabo de doença é essa? Afinal onde dói em você?

---No pênis...

---O que é pênis?

---O Pinto.

---O quê? Você está com pinto doente? Nossa!

---E onde você arrumou isso?

---No Zé Bolinha.

---Quem é Zé Bolinha?

---O dono do cabaré.

---Cabaré?!... E ele te pegou a doença?

---Não!!! Foi uma das mulheres dele!!!!! 

---O quê? A mulher dele te pegou doença no pinto?

---Ah, Armando, Assim, não dá você é bobo demais!

 (E o meu amigo Ley tinha razão, eu era bobo demais)

 Coitado do Ley. Ficou desorientado com o chumbo na asa. Afinal, pinto que leva chumbo na asa não consegue trepar no poleiro...

 Que Deus o tenha meu amigo! Onde quer que esteja receba o meu abraço.---

Armando Melo de Castro

Candeias MG Casos e Acasos

 

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